“Niketche — uma história da poligamia” é uma dança de mulheres que reinventam o amor, a lei e a vida

03/10/2025  “Niketche — uma história da poligamia” é uma dança de mulheres que reinventam o amor, a lei e a vida


Em fábula realista, escritora moçambicana enfrenta as dores de uma tradição patriarcal com a união entre mulheres.

O romance de Paulina Chiziane é uma coreografia de encontros improváveis entre mulheres, suas culturas e tradições.  A narrativa é conduzida por Rami, uma mulher instruída que vive em Maputo, capital de Moçambique, e descobre que o marido Tony — um comandante da polícia local — mantém diversas amantes, casas e filhos espalhados pela cidade. Entre brigas, ciúmes e rivalidades, Rami entende que quando as mulheres deixam de se ver pelos olhos do patriarcado e se reconhecem mutuamente, o mundo se transforma.  

“Niketche — uma história da poligamia” foi publicado em 2002, cerca de dez anos após o fim da guerra civil que devastou Moçambique (1992). A história escrita por Chiziane, que participou ativamente no movimento de libertação que conquistou a independência do país, é fruto de um momento de reconstrução nacional, marcado por choques culturais e a forte presença do imaginário feminino em formação dentro de uma nova identidade pós-colonial. Em 2004, o livro foi publicado no Brasil em uma primeira edição pela Companhia das Letras. 

O título do livro remete à uma dança de iniciação feminina da região da Zambézia, norte de Moçambique — o niketche — associada ao erotismo, transmissão de saberes e celebração. É um aprendizado ancestral que desmonta o moralismo sexual, valorizando o desejo feminino. O romance faz da dança uma metáfora: Rami aprende passos novos para mover-se num terreno onde tradição e modernidade, cidade e campo, sul e norte, cristianismo, islamismo e cosmologias locais se enroscam.

 

Poligamia e sororidade 

A obra de Chiziane aponta as tensões entre a lei do Estado, herdeira do colonialismo com a monogamia como discurso oficial; e a vida prática, onde a poligamia impera como arranjo de poder e privilégio masculino. Logo no início da narrativa, a protagonista Rami, casada com Tony, demonstra sua insatisfação com o marido, que nunca aparece em casa. Ela descobre, então, uma segunda esposa, Julieta. Depois uma terceira, Luísa, depois Saly e, por último, a mais jovem, Mauá. Além das cinco mulheres, Tony também teve 16 filhos. Nos primeiros encontros com essas mulheres, Rami sofre e entra em conflitos e brigas. Ela e Luísa chegam a ser presas por uma luta corporal na rua. “Durante dias e dias procuro ouvir a voz da minha consciência. Procurar uma solução para o meu problema que se complica a cada dia. Os conselhos sentimentais falharam. As guerras com as minhas rivais só me trouxeram problemas de saúde e aborrecimento”, conclui Rami, que vai buscar conselhos com sua tia Maria, que lhe conta sua experiência com a poligamia. “Cada mulher tinha sua casa, seus filhos e suas propriedades. Tínhamos o nosso órgão - assembleia das esposas do rei - onde discutíamos a divisão do trabalho… Havia muita liberdade, muita liberdade. As damas não passavam carência de espécie alguma. Nem afetiva”, relata a tia, que é questionada por Rami, ainda confusa. “Mesmo assim, para quê tanta mulher e tanto filho?”. Tia Maria explica que a virilidade do rei era medida pelo número de mulheres e filhos. Rami não se convencia com as explicações da tia, mas, estranhamente, resolveu aceitar o convite de Luísa, amante de seu marido, para o aniversário de um de seus filhos com Tony. Dessa vez, sem briga. 

Aos poucos, Rami foi conhecendo uma a uma e ao se encontrarem, as mulheres vão deixando de ser sombras e ganham rosto, história e necessidades. Negociam regras, repartem recursos, cuidam de filhos, pressionam Tony por reconhecimento e justiça. Todas se tornam esposas e cada uma recebe o marido por uma semana, em um revezamento. Reuniões são feitas regularmente para tomadas de decisão e trocas de informação. As mulheres também criam uma economia solidária. Passam a realizar trabalhos como venda de roupas e salão de beleza, o que lhes garante maior poder de decisão. Não é uma sororidade ingênua: há ciúmes e disputas, mas também uma ética de sobrevivência. O que o romance revela é a hipocrisia social que normaliza o harem clandestino desde que a dignidade feminina seja o preço. Ao expor o arranjo, Rami e as demais mulheres retiram o segredo que o sustenta e tomam as rédeas de suas vidas, apesar de ainda sofrerem com as submissões e humilhações da sociedade patriarcal em que vivem. 

O corpo feminino

Cada uma das mulheres deste casamento poligâmico traz uma visão de mundo, uma experiência de vida e um repertório de saberes. Algumas são mais jovens e pragmáticas; outras mais velhas e guardiãs de ritos; há as que dominam o orçamento, as que dominam a cozinha, e as que dominam a sedução e um conhecimento profundo do próprio corpo, como Saly e Mauá, que vem da cultura do norte de Moçambique, onde nasceu o  niketche. “Todo homem é criança nos nossos braços. Transmigra. Esquece a vida e a morte, porque o corpo da mulher é eternidade”, afirma Mauá. 

Chiziane traz o corpo feminino negro como território de saber e prazer. Nas conversas, nas danças e nos rituais, as personagens reclamam o prazer como direito e conhecimento. Através dessas trocas entre as mulheres, Rami  deseja conhecer o seu corpo como nunca antes. “Vou à casa de banho e passo a mão por baixo de mim mesma. Nem escamas. Nem lulas. Nem tentáculos de polvo. Apenas uma concha quebrada onde o vento passa sem canto nem eco. Uma concha insípida, com sabor de água que nem mata a sede”.

          A falta de intimidade das mulheres com o próprio corpo, o desconhecimento do prazer feminino, é apontado também como resultado dos processos de colonização, como afirma a personagem Saly à Rami. “Não tens culpa - Vocês do sul deixaram-se colonizar por essa gente da Europa e os seus padres que combatiam as nossas práticas.  Mas que valor tem esse beijo comparado com o que temos dentro de nós? Depois trouxeram a pornografia, essa estupidez só para enganar os incompetentes e entreter os tolos”.  

Pluralidade de linguagens, culturas e vozes

O casamento de Tony com suas cinco esposas é um microcosmo da nação Moçambicana: nele convivem diferentes culturas, memórias de guerra e familiares, heranças coloniais e religiões diversas.  Com uma “oralidade escrita”, marca da autora,  “Niketche” mistura confissão, fábula e crônica social. Paulina Chiziane cria um texto que ri para não chorar, e que politiza a vida doméstica sem perder o afeto. 

A voz de Rami é direta e, às vezes, até sarcástica, como quando faz desabafos e dialoga com o espelho do seu quarto - o que nos remete imediatamente aos contos de fadas. “Diz-me, espelho meu: serei eu feia? Serei eu mais azeda que laranja-lima? Por que é que o meu marido procura outras e me deixa aqui? O que é que as outras têm que eu não tenho?”.

Mesmo quando escreve sobre dor e humilhação, o humor não relativiza nada, mas desarma. Muitas das páginas mais políticas são também as mais cômicas, porque revelam, pelo exagero, a lógica absurda que rege o privilégio masculino. Como quando Tony é dado como morto e a tradição, beirando um surrealismo, diz que Rami, sua primeira esposa, não deve ficar com nada. “Depois do funeral, a divisão de bens. Carregam tudo o que podem: geleiras, camas, pratos, mobiliário, cortinados. Até as peúgas e cuecas do Tony disputaram. Levaram quadros, tapetes da casa de banho. Deixaram-me as paredes e o teto, e dão-me um prazo de trinta dias para abandonar a casa”.

“Niketche” é um romance que desmonta certezas sobre amor, casamento, lei, costume, corpo e poder. A obra ocupa lugar importante na literatura moçambicana e lusófona contemporânea, colocando no centro a voz de uma mulher que constroi, com outras, um novo modo de narrar e existir. É uma história que não se contenta em denunciar, mas também elabora saídas, mesmo que parciais e provisórias, para uma vida mais justa.

Texto por Anna Luiza Lima Guimarães.

Niketche: Uma História de Poligamia está entre as obras indicadas para o vestibular da UEL - Universidade Estadual de Londrina.

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