Quase uma década com Shirley Jackson, por Débora Landsberg

02/09/2025

Uma mulher de óculos, com o queixo apoiado na mão, está em primeiro plano na foto em preto e branco. Ela tem o cabelo escuro preso e está olhando diretamente para a câmera. Seus óculos de gatinho têm armação escura e ela tem anéis nos dedos. O fundo está desfocado e exibe o que parece ser uma estante de livros.

Nunca tinha ouvido falar de Shirley Jackson até receber a proposta de traduzir Sempre vivemos no castelo para o selo Suma, em 2016. E faz muito sentido que ela tenha me passado despercebida até essa data: Shirley ficou algumas décadas meio esquecida depois de sua morte, em 1965, aos quarenta e oito anos. Dei uma lida no começo do livro e aceitei o trabalho. A gente sempre dá uma passada de olhos no arquivo para ter uma ideia do que vem pela frente. Isso evita armadilhas: já recusei livro porque era cheio de poeminhas, e nem todas as oficinas de tradução de poesia com o grandioso Paulo Henriques Britto tiraram de mim a sensação de pânico diante de um versinho. Mas quem traduz há algum tempo sabe que muitos dos desafios da tradução não são visíveis à primeira vista. Uma coisa é ler e entender tudo o que está escrito, outra bem diferente é transpor um texto para a nossa língua com o intuito de causar o mesmo efeito que ele provocou no leitor do texto original. E o grau de dificuldade só fica claro de verdade quando se põe a mão na massa.

Em Sempre vivemos no castelo, última obra escrita por Shirley, duas irmãs vivem com o tio em uma casa depois da morte de todos os outros membros da família. Os três vivem isolados, evitando contato com os vizinhos. Merricat, a caçula, é a irmã que sai de casa, faz as compras, vai à biblioteca pegar livros, e é ela a narradora da história. Um dos aspectos mais complexos dessa tradução foi a linguagem infantilizada de Merricat: ela diz logo no primeiro parágrafo que tem 18 anos, mas já cansei de ler resenhas e ouvir podcasts em que leitores dizem que Merricat tem uns 12 ou 13 anos. Esse era o objetivo em inglês — e portanto fico feliz de ter conseguido reproduzir isso em português. 

Traduzi A assombração da casa da colina já no ano seguinte. Nesse livro, Eleanor é uma das pessoas supostamente sensitivas convidadas a passar um tempo em uma casa mal-assombrada. Sozinha e sem rumo depois de perder a mãe doente de quem cuidou por muitos anos, ela aceita. Coisas esquisitas acontecem na casa, mas Shirley Jackson não é uma autora de terror que se concentra em portas que batem sozinhas ou em fantasmas que deixam recados. O que ela investiga é a reação que essas portas e recados provocam nos hóspedes. Ao longo da leitura, vemos a saúde mental de Eleanor degringolar e nos perguntamos: ela está enlouquecendo porque está vendo coisas ou está vendo coisas porque está enlouquecendo? Mas nada neste livro foi tão assustador quanto traduzir seu primeiro parágrafo, considerado um dos melhores da literatura. Toda vez que eu abria o arquivo, lá estava ele, me pedindo mais uma revisãozinha, mais uma leitura em voz alta. (Aliás, o primeiro parágrafo de Sempre vivemos no castelo também é tido como um dos melhores da literatura. Ou seja, Shirley Jackson, a rainha do terror, é também a rainha do primeiro parágrafo.)

O homem da forca, lançado aqui em 2021, supostamente é inspirado no sumiço de uma garota na cidade onde a autora morava na época. Antes de ir para a faculdade, Natalie participa de uma festa na casa dos pais, durante a qual um fato perturbador acontece. A personagem segue a vida tentando fingir que nada aconteceu, mas o livro inteiro é um retrato do atordoamento de Natalie. A esta altura, a Shirley já tinha um público que vinha me perguntar se haveria mais lançamentos dela, e foi a glória finalmente poder avisar que sim, um novo livro estava para ser publicado. Esse foi o primeiro livro que saiu originalmente pelo selo Alfaguara, onde suas histórias ganharam capas maravilhosas da Elisa von Randow, com pinturas de Will Barnet. 

Uma serigrafia colorida de Will Barnet, intitulada Ilustração de Will Barnet

Mas antes de O homem da forca, chegou um momento que eu esperava desde que comecei a traduzir a Shirley Jackson. O conto "A loteria" foi publicado pela primeira vez em 1948, na New Yorker, e gerou uma onda de cancelamentos de assinaturas da revista e de cartas revoltadas. Na história, todo ano, por tradição, no dia 27 de junho, um morador de uma cidadezinha é sorteada. Sorteada para ganhar uma bicicleta, um eletrodoméstico, para comer de graça num restaurante? É o que parece, no começo. Não digo mais nada porque, se existe um conto que deve ser lido sem que se saiba o que vem pela frente, o conto é esse. Eu o traduzi primeiro para a coletânea Contos clássicos de terror, com seleção de Julio Jeha e publicado pela Companhia em 2018. Foi um vislumbre da possibilidade de um livro de contos da Shirley ser publicado mais adiante, e isso enfim aconteceu em 2022. Em A loteria e outros contos, a autora mergulha em diversas facetas da vida nos subúrbios americanos, da vida doméstica, dos horrores de ser mulher. Além de “A loteria”, meus contos preferidos dessa coletânea são “O dente”, em que uma mulher pega um ônibus sozinha, totalmente grogue, rumo a Nova York para tratar uma dor de dente, e “Charles”, em que todo dia um menino conta aos pais o que um colega de jardim de infância apronta. Traduzir um livro de contos (coisa infelizmente rara, pois sabe-se que eles vendem menos do que romances) é um retrato perfeito do trabalho do tradutor literário, só que na velocidade máxima: o desafio de achar o tom certo, se inteirar do tema, criar intimidade com os personagens etc. recomeça de poucas em poucas páginas. 

Agora está sendo lançado o romance O ninho do pássaro, em que Elizabeth, Lizzie, Betsy, Beth e Bess ocupam o mesmo corpo — e travam uma batalha por sua posse definitiva. Todas elas, claro, se expressam de formas diferentes. E uma delas cita canções de ninar, um problema tradutório tenebroso. A solução que propus foi usar canções em português que ficassem no mesmo campo semântico das canções do original. Se em inglês a canção falasse em estrelas, por exemplo, eu buscava uma canção em português que também falasse de estrelas. Caso não existisse nenhuma, eu procurava uma que falasse do céu. Para completar, quando o narrador é o Doutor Wright, psiquiatra de Elizabeth, a linguagem é mais formal, no estilo de um relato clínico. Ou seja, a tradução desse livro foi uma festa.  

Poucas coisas são tão legais quanto traduzir, e traduzir várias obras do mesmo autor é um enorme privilégio. Em resposta a uma carta de uma leitora desgostosa, Shirley Jackson escreveu: “If you don’t like my peaches, don’t shake my tree”, isto é, “se você não gosta dos meus pêssegos, não venha sacudir a minha árvore”. Agradeço às editoras Luara França e Fernanda Dias por confiarem esses pêssegos suculentos a mim. Também agradeço a todos os preparadores e revisores que melhoraram o texto final desses cinco livros.

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Débora Landsberg é graduada em Letras e mestre em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio. Em sua dissertação, investigou como tornar diálogos traduzidos mais verossímeis. Em 2017, foi tradutora literária residente da Literature Ireland, e durante sua estadia na Irlanda lecionou no Trinity College Dublin. Tradutora desde 2005, já verteu para o português obras de autores como Charles Dickens, Margaret Atwood, Sally Rooney, Shirley Jackson, Jamaica Kincaid, Toni Morrison, Orhan Pamuk e Emily St. John Mandel, entre muitos outros.

  

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