"Te dou minha palavra" pelos olhos da autora, Noemi Jaffe

25/08/2025

Entre as lembranças mais remotas da minha infância, algumas parecem envolver todas as outras, como uma goteira que ficasse pingando na mente: são as línguas no meio das quais nasci e as reações opostas do meu pai e da minha mãe à experiência da guerra e posterior sobrevivência. 

Ídiche, hebraico, iugoslavo, húngaro, alemão e português, todas misturadas, em casa, na escola e nas ruas do Bom Retiro, um bairro que mais parecia um vilarejo judaico europeu, com seus personagens folclóricos e, agora, quase extintos. Essa babel encravada em São Paulo e dentro da minha casa foi, aos poucos, criando em mim um espanto e paixão permanentes pelas palavras e uma aptidão para o aprendizado de línguas. Semelhanças e diferenças entre elas, todas meio esquisitas e periféricas, acabaram disparando meu interesse pela etimologia e, investigando as origens das palavras com parentes, nas enciclopédias e nos dicionários, descobri que cada palavra continha várias histórias.

Ao mesmo tempo, ser filha – e temporã – de dois sobreviventes de guerra me tornou uma espécie de receptáculo das histórias dos meus pais, que reagiam a suas memórias de forma oposta: minha mãe não queria saber de lembrar do sofrimento no campo de concentração e meu pai não queria saber de esquecer. Apegada ao futuro e apegado ao passado, os dois me escolheram como público para seus “causos” e para falar mal um do outro.

Tenho plena certeza de que essas experiências somadas, a das línguas e das histórias dos meus pais, foram as duas matrizes do meu amor pelos livros e pela escrita.

 

Os encontros em "Te dou minha palavra"

Te dou minha palavra é um encontro entre mim, já escritora e mais velha, com a menina e a adolescente que eu lembro de ter sido, a partir das línguas, das palavras, discos que escutei e livros que li. Relendo-os, cerca de quarenta a cinquenta anos mais tarde, lembro de coisas de que já tinha me esquecido e reconheço frases e trechos que, em certa medida, definiram minha psique e minhas escolhas estilísticas. Cada livro desses, como O pequeno príncipe, O eu profundo e os outros eus, A enciclopédia do humor judaico, Demian, ou cada disco, como Rosa dos Ventos e Construção está ligado a algum momento importante da minha vida e formação e, percebi, surpresa, sua atualidade e presença até esse momento da minha vida

De formas diretas e indiretas, todas essas leituras se relacionam com o fato de eu ser filha de sobreviventes e de ter recebido uma herança de dor que, se me causou melancolia, também me fez compreender que as histórias representam uma parte essencial do que sou. Misturando os personagens da Torá com os poemas de um livro de poesia para crianças; testando proparoxítonas, aos 9 anos de idade, para imitar a arquitetura da canção Construção; plantando árvores enquanto escutava Abacateiro ou descobrindo a rebeldia ao ler Demian, foram as histórias que esculpiram minha formação individual, como se o mundo e a vida não fossem somente reais, mas também inventados. Como se, para lidar com o monstruoso – das experiências dos meus pais e da rejeição dos amigos – só na imaginação eu pudesse encontrar o mesmo estranhamento que sentia no real. Só na escrita e na leitura eu encontrava (e encontro) a mesma pergunta que fazia (e faço) cotidianamente ao mundo: por que as coisas são como são, por que existe o incompreensível e como faço para participar?

Te dou minha palavra, uma antiga expressão de juramento e lealdade, é uma tentativa de oferecer ao leitor aquilo que a vida me deu de mais valioso: as palavras e as histórias.


Conheça Noemi Jaffe

NOEMI JAFFE nasceu em São Paulo, em 1962. Doutora em literatura brasileira pela USP e crítica literária, é autora, além do lançamento Te dou minha palavra, de Lili, O que ela sussurra, Não está mais aqui quem falou, Írisz: As orquídeas e Escrita em movimento, no qual compila reflexões sobre escrita criativa que colheu ao longo de anos de docência,

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