
Conheça "Escrever é humano: Como dar vida à sua escrita em tempo de robôs", de Sérgio Rodrigues
Novo livro do ensaísta e ficcionista Sérgio Rodrigues fala sobre a escrita nos tempos de inteligência artificial. Leia o prefácio e conheça!
Pioneira no terror psicológico moderno, Shirley Jackson (1916 – 1965) foi influência para grandes nomes do terror. A autora ganhou notabilidade em 1948, com a publicação conturbada do conto A loteria na revista The New Yorker. Na ocasião, leitores furiosos enviaram cartas reclamando da "imoralidade" da narrativa, muitos cancelaram suas assinaturas e outros encheram Jackson de mensagens de ódio e ameaças.
Escrito em uma só manhã, o conto retrata uma pequena vila, semelhante à que a autora morava, e questiona a tradição da sociedade norte-americana, a violência coletiva e o conformismo social. Os personagens foram inspirados em seus vizinhos, representados como bárbaros.
Para além de A loteria, as histórias de Shirley nasciam do cotidiano e navegavam por diversos aspectos da ficção, revelando a fina membrana entre o real e o imaginário. Escreveu seis romances, duas memórias e mais de 200 contos, dentre quais 24 estão reunidos em A loteria e outros contos, única coletânea publicada enquanto Shirley Jackson ainda estava viva.
Escrever na década de 1950 tinha limitações. Jackson, que cuidava do lar e de quatro filhos, trabalhou um gênero literário muitas vezes associado a homens, o que implicava driblar convenções de gênero.
Essa realidade não passava impune às críticas de Jackson, refletidas em suas histórias como questionamentos — mais ou menos sutis — aos papéis de gênero da época. As demandas por romper padrões sociais, rejeitando o papel tradicional da mulher e buscando liberdade sexual e autonomia, só surgiram uma década depois, entre os anos 1960 e 1970, com a segunda onda do feminismo nos Estados Unidos.
O tempo que Shirley passava reclusa no lar certamente afetou sua escrita. Ao driblar os afazeres domésticos para escrever, os contornos da casa ocuparam espaço em suas histórias: como em A assombração da Casa da Colina (1959) ou em Sempre vivemos no castelo (1962), suas personagens estão inseridas em grandes lugares mal-assombrados, mas nem por isso menos claustrofóbicos.
Enquanto somos sondados por manifestações fantasmagóricas, Shirley nos guia por um labirinto sombrio de medo e suspense onde tudo parece familiar, até adquirir traços tão perturbadores que apenas poderiam pertencer ao âmbito sobrenatural. O ambiente doméstico deixa de representar somente o isolamento e passa a refletir medos, fragilidades e angústias dos personagens, fazendo-os questionar a própria sanidade.
"A história de casa mal-assombrada mais próxima da perfeição que eu já li."
Stephen King
Na segunda metade do século XX, a psicanálise atingia seu ápice, aproximando-se de campos como arte e literatura e impactando significativamente a obra de Jackson. O cotidiano assombroso da autora ganhou contornos ainda mais macabros ao incorporar conceitos idealizados por Freud alguns anos antes. O homem da forca (1951), seu segundo romance, narra uma história assombrosa sobre loucura e obsessão por meio de uma personagem que teme a própria consciência. Aos poucos, torna-se difícil saber onde termina a realidade e onde começa sua sombria alucinação.
O fascínio de Shirley pela mente humana aparece mais uma vez em 1954, quando a autora publica O ninho do pássaro, obra inédita no Brasil, lançada pela editora Alfaguara, com tradução de Débora Landsberg. Com dores de cabeça e lapsos de memória, a protagonista deste livro vive num casarão excêntrico e frequentemente questiona a própria realidade, já que começa a ser perseguida por suas diferentes personalidades. A história se desdobra a partir do termo "estranho familiar", cunhado por Freud, que se refere a algo que, embora familiar, evoca sentimentos de estranhamento, medo ou desconforto, sensação que permeia toda a obra de Shirley Jackson.
"Os contos de Shirley Jackson estão entre os mais assustadores já escritos."
Donna Tartt
Usar um gênero literário subjugado para questionar o conformismo social diante das tradições no meio do século XX fez Shirley Jackson entrar para a história. A autora expôs os horrores do comportamento humano e tornou-os equivalentes às entidades perversas do mundo sobrenatural, indistinguíveis entre si na familiaridade do cotidiano.
Tão atuais como na época que foram escritas, as críticas de Shirley devolvem o fôlego de mulheres deslocadas e ansiosas, sufocadas por normas sociais, nos interiores de casas mal-assombradas que parecem ter vida própria. Este texto é um convite, mas também um aviso, para se aventurar pela obra da “rainha do terror”: mesmo abrindo as portas com calma, essas histórias são tão intensas que é impossível sair ileso.
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