Os caminhos que se encruzilinham em Boca do mundo, por Dia Bárbara Nobre

11/07/2025

Para alguém vindo de um lugar indeterminado, qualquer movimento se torna um retorno, porque nada mais atrai com tanta força que o vazio.

— Olga Tokarczuk

A primeira entrada do meu diário de escrita de Boca do mundo data em 4 de setembro de 2021 e é um verbete:

Itinerarium, do latim: guia de viagem;

  1. Relativo às estradas, aos caminhos;
  2. Descrição de viagem;
  3. Caminho a seguir;
  4. Indicação de todas as estações que se encontram no trajeto de uma estrada de ferro;
  5. Prece em intenção de quem parte em viagem.

Em seguida, escrevi: “Tenho 34 páginas de algo incerto”.

A metáfora da viagem, do caminho, sempre foi algo muito presente em minha vida. Nasci no Cariri cearense, mas a carreira acadêmica me permitiu conhecer, visitar e morar em diversos sertões. Posso afirmar que esse espaço-sertão, muitas vezes tomado como algo homogêneo, não é uma coisa só, são múltiplos, assim como seus sotaques, suas gentes, suas histórias e práticas culturais.

A partir das minhas experiências de observação e pesquisa, construí uma narrativa de encruzilhinha, para usar um conceito de Maria Carolina Casati, com inúmeros elementos desses variados sertões e das muitas mulheres que os habitam.

A imagem da encruzilhada também é forte no livro.

Em outra entrada do diário, anotei a impressão que tive ao visitar pela primeira vez um povoado próximo de Petrolina e, ao chegar lá, me dar conta de que as poucas casas do lugar se organizavam em forma de cruz. Veio daí o mote que marcou a escrita do primeiro capítulo e que permaneceu praticamente intocado desde a primeira versão da história.

Na Umbanda, a encruzilhada é um espaço que concentra energias ligadas à Pomba Gira e Exu, entidades que abrem caminhos e protegem dos perigos das ruas. Encruzilhadas também são sobre encontros e, por isso, Urânia, povoado-cenário-entidade onde se passa a história, passa a ser esse lugar em que os destinos das personagens convergem.

Esse itinerário inicial me levou ao encontro de diversas mulheres. Mulheres abusadas, violentadas, machucadas pela misoginia cotidiana, mas também mulheres que resistem e que, apesar dos pesares, conseguem se reerguer e construir novos sentidos.

Um dia desses, ouvi um escritor famoso dizer que os leitores não aguentam mais histórias que tratam de violências contra mulheres. Outro amigo, também escritor, me perguntou se a história valia a pena ser contada.

A pergunta que me vem à cabeça, a única possível, é: será que eles não sabem que também estamos cansadas de temer e que nos silenciar é também uma forma de violência?

Eles sabem. Porque existe uma ferida aberta e ela está à mostra. Por isso, questionam a validade da nossa literatura. Por isso, reduzem o que escrevemos à “literatura feminina” ou “de mulher”, como se nossa história não fosse universal, como se não criasse identificação nem identidade.

Acredito que Boca do mundo traz não uma, mas várias histórias que merecem ser contadas. São histórias que também podem chocar alguns leitores desavisados. A literatura possui muitas funções, mas uma delas, certamente, não é a de nos poupar das coisas da vida.

Entretanto, Boca do mundo não é centrado na violência, mas no que acontece depois: nas formas de existência e resistência das mulheres. O Brasil onde cerca de 37,4% das mulheres são vítimas de violência¹ é o mesmo em que 51% delas são provedoras da família². Eu quis narrar esse lugar de protagonismo feminino, onde as mulheres são curandeiras, arrimo de família, líderes, empresárias, empreendedoras, poderosas.

Pensando nas metáforas que escritoras e escritores usam para explicar o ofício de escrever (jardineiras, criadoras, construtoras, mães etc.) me dei conta de que fui mais uma cartógrafa. Desenhei a história como um mapa, uma espécie de carte du tendre. Um mapa do futuro, portanto, que se desenhava conforme a história pedia. Regida por Marte em Escorpião, essa topografia se alimentou de muita pesquisa histórica (e de raiva), afinal, a pesquisadora e a escritora andam de mãos dadas.

Consultei diversos casos reais para construir as personagens. Teresa e Hermínia, a “Santa das Espancadas”, foram inspiradas em várias notícias de violência doméstica e feminicídio, mas há referência especial ao caso de Isabel Maria da Conceição, morta em Crateús, no Ceará, em 1929, que gerou um culto popular realizado até hoje em uma capela à beira da estrada, entre Guaraciaba do Norte e Reriutaba, na Serra da Ibiapaba.

A história da beata Maria de Araújo, mulher negra, silenciada e apagada da História do Cariri cearense, foi meu objeto de estudo durante a formação acadêmica. No livro, a devoção à Maria é ficcionalizada, já que não existe nos dias de hoje.

Abigail, Djanira e Urânia condensam características da minha avó materna (de tantas avós), mas também de personagens históricas como Bárbara de Alencar, líder revolucionária do século XIX, e Brígida de Alencar, que fundou uma cidade no meio do sertão pernambucano, em meados do século XVIII.

Escrever Boca do mundo foi, para mim, como fincar os pés em uma encruzilhada e, ao mesmo tempo, abrir caminho para outras vozes, outras histórias que ainda precisam ser contadas. Este livro não se encerra, ele convoca. Convoca a escuta, a empatia, a indignação e, sobretudo, a ação. Que ele sirva como um mapa para quem se perdeu e um abrigo para quem resiste. Enquanto houver a imposição do silêncio, haverá palavras insurgentes. E é com elas que seguimos.

 

Dia Bárbara Nobre
Belo Horizonte, inverno de 2025
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Conheça Boca do mundo, de Dia Bárbara Nobre


¹Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024. Acesso em 19/06/2025. Disponível aqui.
²Censo Demográfico de 2022 do IBGE. Acesso em 19/06/2025. Disponível aqui.

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