Leitura e pré-adolescência: entenda por que é um desafio

05/11/2025

Antes.

Foi assim que contaram, muito depois: tudo aconteceu em um fim de tarde sufocante, o céu sem nuvens, a floresta e suas criaturas já se preparando para a noite. Vegetais e animais, mamíferos grandes e pequenos, répteis, insetos, aves e peixes – todos em seus lugares, cumprindo seus destinos. Então apareceram os homens. 

Eram sete, com seus cavalos e jumentos...

 

***


Eu sabia que aquele não seria um dia normal. Não tinha como ser. Eram cinco e quarenta e cinco da manhã e eu já estava com o celular da minha mãe nas mãos. 

- Alô? Quem é?

- É o Paulo.

- Quem?

- Eu, Mia. O Bereba. Você não me ligou?

- Liguei. Mas você não está com a voz do Bereba. 

- Sou eu, Mia!

- Já sei. É voz de sono. Você acordou agora? Bereba, são quase seis...

 

***

 

- Ada Maria Herculano da Rocha! Você viu o que você fez?

Encarei minha mãe em silêncio, sem saber como responder àquela pergunta que já tinha escutado um milhão de vezes. Sem pensar, fiz o que eu faço quando fico nervosa: passei a mão no cabelo, afastando as mechas do rosto. Minha unha prendeu em alguma coisa: um milho meio estourado enroscado nos fios. Pincei o grão com a ponta dos dedos e joguei longe. 


Começamos este texto com começos de três livros diferentes. Diferentes, mas do mesmo selo, Escarlate. Mesmo selo, mas leituras voltadas para crianças de 8 a 12 anos... os e as pré-adolescentes! Como será que podemos atingir em cheio o gosto destas ainda (para as famílias sempre serão, não?) pequenas pessoas que estão na transição entre a infância e a adolescência

Com diversidade. 

De histórias, de personagens, de ambientação, de linguagem até. Mas também uma pitada de algo em comum dos interesses da idade. Comum em pleno século 21, quando temos tanta coisa no radar delas e deles, além do tempo que se gasta com as telas, gadgets, séries na televisão. Olha o desafio! Um desafio que a editora Brinque-book resolveu enfrentar em 2013, criando o selo Escarlate. A primeira fase foi enquadrar os livros pensados para esta faixa etária. Depois, desafiar autores a criar histórias novas, instigantes, divertidas, emocionantes, surpreendentes... 

Ilustração de 'O ano em que criei um mundo do zero'

Ilustração de 'O ano em que criei um mundo do zero' (Escarlate, 2025)

Como estes três livros com os trechos acima, todos lançados em 2025! O primeiro é Criaturas (Escarlate, 2025), da autora franco-brasileira, Maria Camargo com ilustrações de Marcelo Pereira, que traz uma história que já se transformou de linguagem de cinema para livro. No enredo, dois irmãos precisam enfrentar mudanças difíceis na sua própria família, lidando com as coisas da vida e da morte, entre o acreditar em tudo e o desconfiar do que vê. O segundo trecho é O Dia Em Que a Minha Vida Mudou por causa de um pneu furado em Santa Rita do Passa Quatro (Escarlate, 2025), de Keka Reis com ilustrações de Vin Vogel, com os mesmos personagens de O Dia em Que Minha Vida Mudou por causa de um chocolate comprado nas Ilhas Maldivas (Escarlate, 2025). Sim, a Mia achava que essa história do chocolate já havia sido estranha, mas, no sexto ano, tudo pode acontecer... é mudança demais! Mas quando trata-se de “estudo do meio” (aquelas viagens que a partir do sexto ano crianças das metrópoles fazem a outras cidades menores e com as escolas) que, segundo Mia, “é um jeito chique de chamar uma excursão da escola”, com pitadas de “primeiro amor” em tempos de redes sociais! O terceiro, por fim, é o O Ano em que Criei um Mundo do Zero (Escarlate, 2025), parceria de Janaina Tokitaka com Pedro Aguilera, com ilustrações de Guilherme Bethlem. Neste, os autores colocam as leitoras e os leitores em clima de missão mais do que especial, na verdade, uma missão “espacial”. O ano é 2089 e Ada e Nico são filhos de cientistas e precisam criar uma versão nova da Terra! Tem IA na jogada, confusões, abraços, choros e começos de muitas formas de vida. 

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Quem são, o que pensam, como se relacionam...

Por mais que haja um planejamento, um pensamento de catálogo, um olhar diferenciado para os originais que chegam à editora Escarlate, selo da Companhia das Letras, não há uma proposta de fórmulas prontas de linguagem e temas: a equipe quer mesmo assumir que as fronteiras no campo da literatura podem não ser tão definidas assim. “Cada leitor é um. Então a experiência leitora de cada um é muito diferente”, diz a editora Elisa Canetti, para começo de conversa, mas apontando alguns caminhos, como pensar em um volume de texto que estimule o fôlego de leitura. “A quantidade de texto muda, as ilustrações ainda têm o seu papel, mas não é igual como em um livro ilustrado, que têm o mesmo peso. E aí também entra a complexidade da trama: mais coisas acontecendo, desenvolvimento dos personagens, as caracterizações deles, um aprofundamento maior”, destaca. Ao mesmo tempo, há de se ter atenção para um período com uma vontade imensa de conversar com sentimentos do dia a dia, típicos das tantas questões desta fase. “O nosso desafio é entender as suas necessidades, as inseguranças, as aspirações. Os pré-adolescentes estão atravessando uma ponte: de um lado, são crianças, do outro, são adolescentes. E no mesmo dia, eles vão e voltam dessa ponte e vão para um lado e vão para o outro mil vezes”, compreende Elisa. 

 

O dia em que minha vida mudou

O Dia Em Que a Minha Vida Mudou por causa de um pneu furado em Santa Rita do Passa Quatro (Escarlate, 2025)

Para os autores, é como se fosse uma eterna busca. Mas pensam que eles desanimam? Que nada! A autora Janaina Tokitaka, já assinando séries e filmes para a TV mas que escreve livros para todas as fases da infância, está de olho em tudo. “É uma das fases mais interessantes para quem escreve. Na minha experiência no audiovisual, vejo que as crianças jogam no vídeogame jogos narrativos, tem muita série de animação e live action para essa faixa etária. Mas, por questões mercadológicas, tem esse vácuo editorial”, diz. Mas o que seria esse “interessante”? “É um momento da vida em que você está tendo percepções sobre a própria existência, o pensamento mágico da infância se dissolve um pouco e você começa a entender temas mais complexos, como finitude, justiça social. As obras para essa faixa etária têm que honrar uma dose de concretude com uma boa dose de nostalgia e fantasia também para que eles não se deixem arrastar tão logo dessa primeira infância.”

Lembrando de como era quando tinha essa idade, o autor e professor de escrita, Caio Tozzi, leva tudo como uma missão. “Fazer isso é muito sério, não é brincadeira”, diz se referindo a quem entenda que escrever para crianças e jovens seja mais “fácil”. “É uma fase de já eles terem muita opinião. Não que a criança não tenha, mas a criança tá ainda muito no lúdico, e o pré-adolescente já troca de igual para igual. E eu comecei a gostar disso e fui estudar”, diz Caio, que foi reler os livros que ele amava nesta faixa etária, os chamados “clássicos” e o que vinha sendo produzido fora do Brasil. “Fui olhando para essa fase onde tudo está acontecendo, que você vai encontrando o mundo, saindo só de um núcleo familiar, desse proteger constante e vai descobrindo e perguntando qual é o seu lugar. E, com isso, mudanças de corpo, de comportamento… Eu lembro que foi quando descobri as minhas referências, que gostava de escrever, de criar histórias. Fui entendendo quão sério é isso e, o mais importante: escutar esse leitor. Eu acho que esse leitor, esse público não é escutado como deveria.” 

Para Keka Reis, a chave é entender que é uma fase mais confusa que a adolescência, sobre a qual falamos mais no geral. “É uma travessia difícil de se fazer”, afirma. Para ela, a expectativa do que eles acreditam que virá depois angustia e isso está relacionando ao que nós, adultos, falamos sobre. “A gente vive em um mundo que ama a juventude, mas que tem um baita desespero da adolescência. Porque o mundo é permeado de signos falando que a adolescência é uma fase absurdamente ruim, que adolescente é chato. Que é uma das fases com maiores taxas maiores se suicídio. Só que a adolescência é uma fase muito divertida de descoberta - ainda que o mundo só propague o desespero. A gente lê que os adolescentes estão ansiosos - mas quem não está?”, continua. “E esse bordão de ‘aborrecência’ é terrível. Imagine como é confuso para a criança saber que em breve se tornará uma ‘indesejada’. Além disso, tem muitas coisas acontecendo. Nessa fase de transição, as crianças assumem maiores responsabilidades - passam a ter um professor por matéria na escola, por exemplo. Há muita insegurança, mudanças no corpo e uma transformação gigantesca no relacionamento em casa”, completa. Isso, sem contar que os ambientes e modos de vida são diversos e afetados pela composição familiar, estrutura social e econômica, valores morais e afetivos. E, assim, vamos compartilhando dilemas comuns. 

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A linguagem é estar junto

O autor Caio Tozzi tem um truque dos bons: quando visita as escolas, adora registrar o que as turmas falam, como falam e, por isso, não apenas responde as questões mas, também, faz perguntas. Com isso, coleciona pérolas e alguns caminhos. “Outro dia um adolescente me falou: obrigado pelo seu livro. Você mostra que tem a parte legal da adolescência", conta o escritor que sempre que pode pergunta às crianças o que elas estão gostando de ler, fazendo uma boa pesquisa, claro, mas também se conectando com eles e até encontrando gostos em comum. Para ele, isso leva a modos de escrita, bem como a escolha de como criar e desenvolver personagens, sua grande paixão. 

Janaina Tokitaka tem suas preferências também na escrita. “Talvez eu tenda a ser mais coloquial porque eu gosto muito das marcas de oralidade. Trago isso dos meus diálogos de roteiros. Eu também gosto de fazer referências ao mundo contemporâneo - k-pop, whatsapp. Eu acho estranha a literatura que não reflete um mundo que existe, que não assume o tempo em que vive para não envelhecer. Sem isso, você não conecta as crianças. As crianças vivem muito mergulhadas no tempo delas.”

Keka Reis está na mesma vibração dos colegas escritores: “Acho que a minha experiência com o roteiro me deu muito ritmo. Escrevo frases muito curtas. E tudo o que aparece feito para crianças e adolescentes, eu assisto e leio. Digo que eu sou uma pesquisadora, porque a gente tem que ver o que está fazendo sentido para eles. E quando visito escolas, eu fico com as antenas ligadas o tempo inteiro.”

“Vibração” e “estar junto”: não tem como escapar disso se o desejo é estar mais perto destes pré-adolescentes. Interessar-se pelo seu mundo é sempre um caminho bom, mas também é preciso dosar com a confiança na independência deles. Independência remete à subjetividade: cada um terá seu caminho como leitor, tanto como vida. O papel do adulto que acompanha, sem dúvida, é oferecer o máximo de oportunidades, de variedade de leitura para, assim, eles poderem de fato escolher os livros, sem o preconceito do “quem sabe mais”. Porém, tem também algo muito gostoso de fazer e que diminui um pouco nesta faixa de idade… se vir uma brecha, não perca: ler junto. É nesse lugar que podem partir conversas interessantes e inesquecíveis! 

(Texto Cristiane Rogerio e Naíma Saleh)

 

 

 

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