
“Se a gente quer promover o encontro do livro com o leitor, a gente precisa estar junto”
O amor pelos livros fez da professora aposentada Zenaide Campos Farias curadora acervos e formadora de mediadores de leitura
Por André Gravatá
São tantas as portas pelas quais a poesia pode entrar numa escola. Se ela entra pela porta da frente, escuta um bom dia caloroso e ainda abrem os braços pra ela, ah, assim a poesia se impregna até os ossos da escola. Se ela encontra aberta a porta do entusiasmo, da curiosidade, aí ela passa a morar na escola. Dá até pra ela entrar pela porta dos fundos, desde que encontre ar, ouvidos, terra molhada. Mas se ela entra pela porta da burocracia, do protocolo, a poesia murcha como um pássaro sem céu.
Conheço muitas educadoras e educadores que me confirmam: a poesia é uma necessidade vital, como diz a poeta Audre Lorde.
A poesia é múltipla: voz, livro, gesto, ato coletivo, tanto mais.
No exercício de imaginar uma pedagogia da poesia, inclino-me ao concreto: notar que ela já dá o ar da sua graça e do seu gosto.
A pedagogia da poesia acontece quando a rua é a página onde se escreve. Como quando os alunos do Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja) Rose Mary Frasson, no Jardim Maracanã, em São Paulo, ocupam um muro abandonado em frente à escola com palavras escritas com pincel e tinta. Palavras que contam as belezas da quebrada. Num gesto assim a escola transborda, anda na ponte que ela mesma firma e afirma entre poesia e educação. (Um viva para essa escola que vêm resistindo com tanta garra e arte às pressões de cortes de turmas, entre outros desafios!)
A pedagogia da poesia acontece quando alguém morde o próprio nome e sente vontade de escrever mais. Quando andei por Araçuaí, em Minas Gerais, encontrei as crianças do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD) ao redor de uma mesa, animadas para escrever seus nomes com massa de biscoito de polvilho, salivando para comer as letras dos seus nomes. Era o momento da Biscoitada, quando preparam o Biscoito Escrevido.
A pedagogia da poesia acontece quando as crianças saem a pé da escola, para chegar até uma biblioteca pública, e no caminho param para observar uma lagarta atravessando a calçada. Aí se agacham, a urgência: ler a travessia da lagarta. Essa cena aconteceu numa das ações do Território Educativo das Travessias, projeto que tive a alegria de me envolver junto com educadoras que tanto me ensinaram. É uma potente articulação de seis Escolas Municipais de Ensino Infantil da rede pública da cidade de São Paulo (EMEI Alceu Maynard, EMEI Antônio Figueiredo, EMEI Armando de Arruda Pereira, EMEI Gabriel Prestes, EMEI Monteiro Lobato e EMEI Patrícia Galvão).
A pedagogia da poesia acontece quando o encontro aguça os sentidos dentro e fora do corpo. Como quando as crianças participam da Semana de Ancestralidade Moderna, que reúne alunos de várias escolas do território de Felipe Camarão, no Rio Grande do Norte, junto com outros tantos parceiros, dentro do projeto Conexão Felipe Camarão. Neste ano, mesmo quando terminou a última atividade da Semana, depois de apresentações artísticas, conversas sobre antirracismo e sonhos, ainda o ânimo irradiava no corpo, dava gosto de ver: as crianças não queriam ir embora, continuavam em círculo, tocando rabeca, triângulo, percussão, não paravam de dançar, soltas na capoeira, cantando músicas com tanta história! Foram essas crianças que me inspiraram a escrever o verso: o canto dos ancestrais estica até o infinito as nossas cordas vocais!
A pedagogia da poesia é uma questão de vida ou morte. Como em Parelheiros, SP, onde moradores aguardam a biblioteca amada ser reinaugurada num outro espaço, e enquanto isso guardam os livros em casa, numa ação do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC). Eles receberam os livros dentro de sacolas confeccionadas por costureiras do território, com a seguinte frase estampada: “Eu (a)guardo a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura”. Importante dizer que o endereço anterior da biblioteca era dentro de um cemitério. Ela teve que desocupar esse espaço durante a pandemia para dar lugar a mais túmulos.
É bem assim que a poesia segue acontecendo: enquanto uma biblioteca é semeada num novo espaço, os livros encontram pouso em casas que expandem a biblioteca para todo o bairro!
A pedagogia da poesia aposta em mais espaço para nascedouros. Quando Manoel de Barros diz que voz de poeta é a “voz de fazer nascimentos”, o que ele está revelando é um compromisso com a vida em expansão.
Mesmo em meio a desafios e fraturas, muitas educadoras têm persistido na poesia como um ato coletivo que fortalece as relações e abre espaço pra outra realidade nascer, para não desperdiçar o espanto e o encanto que pingam na vasilha do olho e de todos os outros sentidos.
Como diz a poeta Adélia Prado: “Não se faz poesia apenas com palavras”. Então celebremos cada professora e professor que inventa vias, veias, túneis e portas abertas para a poesia desembocar na educação, com e sem palavras.
Convido você pra seguirmos essa conversa num encontro gratuito e online hoje, 15 de outubro, às 19h30! Clique aqui e saiba mais sobre esse presente-presença para professoras e professores.
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André Gravatá se define como um "poeta perplexo". É autor de Converseiro da Natureza (Companhia das Letrinhas, 2025), com Kammal João, e tem uma relação íntima com a educação. É um dos criadores do projeto Virada Educação, assina com outros autores o livro-reportagem 'Volta ao mundo em 13 escolas', idealizado a partir da viagem de quatro educadores brasileiros a centros de aprendizagem nos diferentes continentes.
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