Projeto Bonde das Estrelas: a mediação de leitura como experiência coletiva e de afeto
Ler de forma coletiva. Transformar a experiência literária em uma vivência autoral. O projeto expande o conceito de acesso aos livros e dá voz às crianças
O amor pelos livros é o que guia a educadora Zenaide Campos Farias. Professora aposentada, ela deu aula por 32 anos em Natal (RN), passando por salas de aulas para diferentes faixas etárias, da primeira infância até a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Hoje, é parte do Instituto Brasil Solidário, fazendo a curadoria de obras para novas bibliotecas e oferecendo formação em mediação de leitura.

A professora Zenaide em uma atividade de mediação de leitura com os professores em São Luís (MA) (Foto: Davi Probo)
A partir de um acervo de 500 livros, Zenaide é a responsável por fazer a curadoria e pensar como as obras estarão organizadas em cada uma das bibliotecas montadas pelo Instituto Brasil Solidário, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse (OSCIP) que tem como missão apoiar e mobilizar educadores, gestores escolares e comunidade para a promoção do desenvolvimento e da justiça social por meio da cultura e da arte. O Incentivo à leitura é uma das oito áreas temáticas do Programa de Desenvolvimento da Educação (PDE), desenvolvido pela organização, que está presente em todas as regiões do Brasil e já ajudou a equipar 509 bilbiotecas.
Mais do que pensar no acervo e na disposição dos livros, mais do que formar educadores para a mediação, pode-se dizer que a grande missão de Zenaide é ajudar a fazer com que a leitura se torne verdadeiramente parte da escola: “Chegamos em algumas instituições e até hoje vemos livros encaixotados. Bibliotecas que ficam fechadas. Se a gente quer promover o encontro do livro com o leitor, a gente precisa estar junto”, afirma a educadora.
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A professora Zenaide em ação (Foto: Davi Probo)
Zenaide é filha de uma mãe professora e de um pai caminhoneiro, que passava mais tempo fora de casa do que dentro. O sonho de Zenaide sempre foi lecionar - mas a mãe não queria que ela fizesse a Escola Normal, que era a formação para professora à época da juventude dela.
Mas Zenaide insistiu em seguir os passos da mãe na docência. Ainda assim, não foi dela que herdou o gosto pelos livros. “Minha mãe nunca foi leitora. Mas quando fui para a escola, tinha seis anos e já estava alfabetizada. O ‘Caminho Suave’, que era a cartilha que usávamos, foi o meu primeiro livro. Minha memória mais afetiva é fechar os olhos e sentir o cheiro daquela escola”, relembra.
A primeira referência que ela encontrou para entrar no mundo da literatura foi a professora do irmão, que se chamava Íris. “Quando meu irmão mais novo foi para a escola, a professora dele trabalhou com um livro que recontava a fábula da lebre e da tartaruga - nem sei quantas vezes eu o li. Foi o meu primeiro livro literário”, lembra. Essa professora tinha um espaço para a leitura organizado na sala e deixava Zenaide entrar. Na época, ela estudava em uma escola de referência da cidade, que tinha uma grande biblioteca - que ficava trancada. Se a possibilidade oferecida pela professora do irmão possibilitou criar intimidade com os livros, a biblioteca trancada a instigou a questionar: por que não deixar os livros ao alcance de todos?
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Foi em 2008 que Zenaide conheceu o trabalho do Instituto Brasil Solidário, que ela considera “uma transformação” em sua vida. A escola onde ela lecionava na época estava prestes a receber, por meio do programa de Incentivo à leitura do instituto, livros e aportes, como mobiliários, para a biblioteca. Por coincidência, a professora havia visto uma reportagem sobre o impacto que esse projeto tinha nas escolas. “Eu lembrei que tinha visto esse pessoal na televisão e fiquei muito animada! A diretora da escola já investia muito na biblioteca, mas a secretária que tomava conta, não deixava os meninos mexerem nos livros porque ela dizia que iriam estragar”, lembra.
Com a chegada do projeto à escola, a secretária que cuidava da biblioteca pediu demissão e a diretora indicou então Zenaide para receber a capacitação do instituto e ficar responsável pela implementação do projeto. “Finalmente, a biblioteca chegou de novo na minha vida”, lembra Zenaide.
O projeto exigia da escola realizar o catálogo do acervo disponível para poder receber os novos livros, uma missão abraçada por Zenaide. “Fiquei entre abril e julho trabalhando nisso até de noite. Nessa época, eu usava computador na escola. Logo, comecei a desenvolver junto com o Instituto Brasil Solidário algumas ações a partir do livro e fui encorajada a distribuir isso para outros lugares. Meu trabalho com o Instituto começou aí”, relembra. Mesmo com experiência na escola, ela sentiu que era hora de voltar a estudar, começou a se envolver em cursos, oficinas, fazer contato com autores e livreiros. Tudo para se preparar para fazer da leitura realmente seu ofício.
Não tem mediador de leitura se não estiver com o livro na mão”, Zenaide Campos Farias
Ainda que tenha sido sempre uma leitora apaixonada, Zenaide demorou para encontrar um caminho que facilitasse o acesso aos livros por meio da educação. Mesmo apaixonada pelo universo das histórias, a própria mediação dos livros a princípio era um desafio. Como professora, ela precisou se questionar sobre práticas enraizadas há anos e rever sua própria forma de trabalhar. “Eu era uma professora com hábitos antigos e precisei mudar. Havia um projeto chamado Leitura Deleite - que propunha ler para as crianças todo dia. Mas era em um formato muito antigo: as crianças no chão e a professora na cadeira. Isso fazia eu me sentir distante. E tinha a sensação de que devia ser por esse caminho”, relembra.
Eu lia para e entendi que é preciso ler com. Não dá para impor uma distância se a ideia da leitura é aproximar”, Zenaide Campos Farias
Hoje como organizadora de bibliotecas, ela vai pelo caminho oposto. Zenaide entende que os próprios livros são convites à leitura e por isso eles devem ficar visíveis e ao alcance dos estudantes. “A forma como os livros são acomodados é importante. Em vez de usar estantes altas, prefiro, por exemplo, organizar os livros em carrinhos mais baixos, que possam exibir melhor as obras na altura dos olhos das crianças”, conta.
Para ela, o maior desafio de se trabalhar com a formação para mediação de leitura é muitas vezes fazer com que os próprios professores despertem como leitores “A primeira palavra que sai é: ‘eu não tenho tempo de ler’. Mas como a gente pode fazer uma leitura que toque os alunos sem estar apropriado da história? É preciso transmitir um certo encantamento”, reflete Zenaide.
A leitura é muito a escuta. É uma escuta profunda”, Zenaide Campos Farias
Para ela, o primeiro passo para uma boa mediação é se aproximar do livro. “Depois eu preciso ter intencionalidade, saber por que eu estou trabalhando com determinado livro naquele contexto”, explica. Vale refletir: como a história se relaciona com o contexto da escola e daquela comunidade? Como se conecta com aquelas crianças e jovens? E, por fim, ter um planejamento, considerando o público, o tempo, a estrutura e o contexto da mediação. Como é o meu espaço? Vou sentar no chão ou em cadeiras? Para quem eu vou falar?
Com orgulho, a educadora conta que seu trabalho de formação de mediadores também tem resultado na formação de novos formadores. E em histórias inspiradoras que ela coleciona de outros educadores que tiveram contato com o projeto. Ela lembra de uma professora em particular que estava para aposentar, vivendo uma situação difícil no âmbito pessoal, e que escolheu continuar trabalhando pela oportunidade de atuar com a mediação. Uma outra ex-aluna da formação contou que organizou um piquenique literário com professores e alunos Para Zenaide, é isso que acontece quando os livros são capazes de romper o cerco das estantes, extrapolar os limites da biblioteca e se tornar parte da escola.
O livro não é a minha paixão - é a minha força, minha inquietação, o que me alimenta. A Yolanda Reis diz que o professor-leitor tem como ofício praticamente ler. Eu sempre digo para os professores que a gente precisa se inquietar para provocar as mudanças”, Zenaide Campos Farias
(Texto: Naíma Saleh)
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