
Otávio Júnior, premiado com o Jabuti em 2020, lança livro infantil sobre o passinho
Vencedor do Jabuti infantil com 'Da minha janela', o autor traz o movimento do passinho para a literatura
O desejo de ler das crianças é legítimo. Mas nem sempre é ouvido.
Foi a partir da escuta delas e da vontade de construir um projeto que atenda a esse desejo de ler - e de também ser lido - que a história do Bonde das Estrelas começou. O projeto, que expande os horizontes da mediação de leitura a partir de práticas artísticas, foi criado com a orientação literária da educadora Isabela Vilela Vieira, conhecida como béu. A ideia era desenvolver uma prototipagem de tecnologia social que se apoia na leitura literária combinada com a expressão artística como estratégia para fortalecer vínculos sociais e comunitários. Além de béu, o Bonde conta com outros dois mediadores de leitura: Fellipe Ramos Pereira, produtor de cultura e videomaker, e Sil Oliveira, cientista social, educador popular e artista visual.
Projeto Bonde das Estrelas encoraja as crianças a realizarem práticas artíticas inspiradas em vivências literárias
O Bonde das Estrelas foi criado no contexto do programa Aprender Mais, realizado pelo Instituto Padre Haroldo com apoio da Fundação Feac, na região do Campo Limpo, bairro periférico de Campinas (SP). O projeto trabalha com crianças do 3º e 4º anos do Ensino Fundamental no período de contraturno. Muitas delas ainda não estão plenamente alfabetizadas. Nesse cenário em que uma leitura autônoma nem sempre é possível, a mediação acontece não apenas como uma experiência de democratização do acesso ao livro, mas sobretudo como uma vivência coletiva de construção de sentidos, que satisfaz o desejo legítimo não apenas de ler, mas também de ser lido e de ocupar um lugar de autoria aparentemente acessível a poucos.
A educadora Isabela Vilela Vieira, a béu
“A palavra não é só uma dimensão pragmática da nossa vida. É uma dimensão sensível, por isso esse mecanismo de segregação, que deixa a leitura inacessível a muitos, é tão cruel. Ao mesmo tempo, quando a gente consegue subverter um pouco essa lógica, o impacto é muito profundo”. Isabela Vieira Vilela, educadora
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O Bonde das Estrelas trabalha com um conceito que Isabela chama de leitura expandida, que se constitui por três elementos básicos: a escuta, a mediação da leitura e a concretização desse processo em uma prática artística. A leitura expandida pode ser aplicada a diferentes contextos, a partir de algumas adaptações.
O primeiro deles, a escuta, abarca tanto perceber as crianças, considerando suas vontades e interesses, quanto olhar para o território para entender em que contextos elas estão inseridas. Esse exercício mapeia as lacunas cavadas por desejos e expectativas não apenas sobre o tipo de histórias que se deseja ouvir, mas sobretudo de ser e sentir parte. “A escuta revela os elementos da falta. Tem criança que diz: ‘Ah, eu queria ler mas eu não sei.’ E quando a gente chega com os livros, o desejo que eles têm de ler, de pertencer e de dialogar é muito profundo”, comenta a educadora.
No segundo passo, a mediação de leitura é pensada como uma prática leitora apoiada no diálogo, construindo sentidos coletivamente. No lugar de cada criança ler por si, em uma experiência solitária, a leitura em conjunto possibilita a inclusão de todos, democratiza o acesso ao livro e transforma a leitura também em uma vivência afetiva, de acolhimento.
“Mediar leituras é uma forma de abrir espaço para o desejo de ler e ser lido que resiste nas crianças, de modo que elas tenham sua habilidade leitora validada e desenvolvida dentro do grupo, independente do estágio de sua alfabetização. Essa validação coletiva impacta positivamente tanto na formação leitora dos participantes como na formação dos vínculos entre crianças, livros, escolas e famílias.” Isabela Vilela Vieira, educadora
O terceiro passo, a prática artística, não tem por objetivo necessariamente fazer uma conclusão da experiência leitora, mas, sim, possibilitar uma concretização do processo vivido. Essas experiências sensíveis podem tomar diversas formas: poemas, pintura, colagem, desenho livre. “Transformar a experiência de leitura em algo concreto mostra que ler não é apenas algo passivo, que se recebe. Mas que de alguma forma podemos nos relacionar com os livros que foram produzidos por alguém ao mesmo tempo em que as crianças também se tornam produtoras de conhecimento”, observa a educadora. Nos dois anos em que o Bonde das Estrelas atua, foram produzidos dois livros que consolidam essas práticas artísticas exercidas pelas crianças.
A leitura é coletiva, mas as crianças também têm oportunidade de lerem sozinhas e manipularem os livros livremente
Durante um laboratório de imaginação literária, um caso interessante chamou a atenção dos educadores para a importância de se abrir essa possibilidade de experimentar a autoria. Quando as crianças foram perguntadas sobre como imaginavam quem era o autor de uma determinada obra apresentada a eles, as respostas soaram como: “É um homem de terno que mora muito longe, em um lugar muito silencioso, perto de um lago…” “Parecia algo muito longe, do Romantismo, muito distante da nossa experiência de pessoas comuns. Então o que passamos a fazer a partir daí é sempre contar sobre os autores, sobre quem são, sobre de onde vêm os livros. E principalmente pensar em apresentar às crianças autores diversos”, comenta béu.
Ela lembra particularmente das experiências com o livro Da minha janela (Companhia das Letrinhas, 2023), de Otávio Júnior, com ilustrações de Vanina Starkoff, que traz o retrato do que se vê pela janela em uma favela do Rio de Janeiro como uma etnografia da vida da comunidade. E também da leitura de Procura-se Carolina (Yellowfante, 2022), também de Otávio Júnior, com ilustrações de Isabela Santos, que faz um mergulho na vida da autora Carolina Maria de Jesus. “A gente tem crianças que a mãe, a avó, a tia trabalham ‘em casa de família’, como empregadas domésticas ou pegando reciclagem. É uma realidade que eles conhecem. E aí elas têm a oportunidade de ver uma pessoa que trabalha, como as famílias deles, e que escreveu livros. Que ganhou dinheiro com isso. É uma possibilidade que se abre”, reflete a educadora.
“A prática artística nos permite colocar a palavra, a criação em um lugar que também nos pertence, que também pertence às crianças” Isabela Vilela Vieira, educadora
As belezas que nascem nos processos artísticos do projeto Bonde das Estrelas
No primeiro ano do Bonde das Estrelas, uma pesquisadora, Layne Gabriele, deu suporte ao grupo fazendo a transcrição dos diálogos com as crianças, sistematizando as discussões para levantar possíveis temas de trabalho. A partir das transcrições, ela propôs tratar de: território, família e sonhos. “Juntando esses temas, chegamos à Feira do Rolo, que é uma característica super forte do bairro”, conta béu. A Feira do Rolo é uma feira de trocas em que se encontra um pouco de tudo e se mobiliza toda a comunidade, como um espaço não apenas de comércio, mas de socialização e lazer. Foi por isso que o primeiro livro produzido pelo Bonde das Estrelas ganhou o título de Os herdeiros da feira do Rolo, que também é o nome de uma das principais produções das crianças.
A partir da leitura do livro Mãe sereia (Pallas Mini, 2018), da autora cubana Teresa Cárdenas com a argentina Vanina Starkoff, que fala sobre a travessia do primeiro navio de escravos da África para Cuba, as crianças fizeram sua própria adaptação poética a partir de suas vivências na Feira do Rolo.
O texto de Teresa Cárdenas diz:
No fundo úmido do navio,
amontoados uns sobre os outros,
acorrentados, gemendo por sua sorte
iam os filhos das florestas e das chapadas cálidas,
os caçadores de gazelas e gnus,
os guerreiros magníficos,
os feiticeiros e as amas de leite,
os garotos que brincavam no pé das montanhas e nos quilombos,
os herdeiros de reinos ancestrais.
E o texto produzido pelas crianças em um contexto de leitura expandida é:
Na feira tumultuada e quente
Livres mas preocupados
Iam piratas, indígenas e pessoas de todo jeito
Europeus, japoneses, africanos e venezuelanos
Os vendedores e guardadores de carros
Os macumbeiros os pastores e padres e espíritas
Exu e os quimbandeiros
As babás as mães e as pediatras
Os garotos que soltam pipa
balançam nas árvores brincam no terreiro e dançam passinho
Os herdeiros da feira do rolo
Uma das principais formas de criação de textos para o primeiro livro do Bonde das estrelas foi por meio de ‘poemas coletivos’. Dentro de um contexto de leitura expandida, o grupo se senta em roda com uma grande folha de papel pardo no centro, e todos vão dizendo suas ideias: versos, frases, metáforas. Os diálogos que acontecem entre as crianças vão estabelecendo as negociações sobre o que entra ou não até chegar a um formato final de texto, depois de várias reescritas. Essas conversas, que revelam os bastidores da criação, também foram sistematizadas pela pesquisadora e se tornaram parte do livro produzido
Outra produção criativa foi feita a partir do livro Da minha janela, que provocou as crianças a se perguntarem o que elas mesmas enxergam de suas janelas. A reflexão deu origem ao poema do Cavalo neon:
eu vi um Cavalo Neon
na minha Janela
ele veio do Espaço
correndo nas Estrelas Cadentes
e chegou com muita fome
de algodão doce
ele comeu e brincou até…
vomitar o Arco Iris
em cima da feira
que se inundou de Flores de felicidade
Na construção do acervo do projeto, a bibliodiversidade é um critério imprescindível para os educadores do Bonde das estrelas.“Procuramos uma variedade de temas, formatos, linguagens e tipos de ilustração. Privilegiamos o livro ilustrado por entender que eles vão proporcionar experiências de leitura ativas e vão necessariamente colocar os leitores nessa posição de descoberta, de recriação, de uma elaboração coletiva de sentido, além de exercitar uma leitura de imagem, que é algo tão necessário”, explica Isabela.
Nesse processo de seleção das obras, os educadores do Bonde das Estrelas seguem a máxima da escritora e antropóloga Heloísa Pires Lima, ao pensarem em livros que são ‘amparo e reparação’. Uma pergunta recorrente nas trocas entre os educadores é: “Não tá faltando mundo aí?” Será que há livros que se conectam à realidade das crianças, um contexto periférico, de vulnerabilidade e marcado por uma convivência multicultural, já que há famílias vindas de vários países. Mas será que também há outros que vão além? Que mostram outras realidades distantes do que as crianças conseguem ver?
Por último, a complexidade das obras e a qualidade artística também são critérios importantes, uma vez que a aposta é sempre no potencial das crianças. Livros não são barreiras: são pontes. Basta ajudar as crianças a fazerem a travessia.
(Texto: Naíma Saleh)
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