Confabulando leituras: educador transforma o próprio território com o amor pelos livros

29/08/2025

Como nasce um educador tão dedicado a ser um mediador de leitura? De muitas maneiras. Aqui é a vez de contar como foi com o capixaba Helder Guastti, vencedor da 27a edição do Prêmio Educador Nota 10 – reconhecido como o maior e mais importante prêmio focado na educação básica no Brasil. Um menino filho de professora, morador de João Neiva, cidade de 14 mil habitantes, localizada no meio do mapa do Espírito Santo, a 80 km da capital Vitória. Se ele era leitor quando criança? Mãe e filho não tinham condições financeiras de ter muitos livros, assim como as crianças que hoje frequentam o espaço Confabulando Leituras, que ele criou em 2017, no Bairro de Fátima. “O livro enquanto objeto, nós não tínhamos em casa, ele era presente pelos empréstimos”, conta Helder. Viram: um leitor, sim, desde sempre. 

 

Helder

Helder Guastti teve a leitura sempre presente em casa - mesmo sem ter os livros

A gente sabe por que. “As histórias sempre estiveram muito presentes aqui em casa. Das memórias mais vivas que eu tenho da infância e que eu lembro com mais carinho, era do compartilhamento de histórias que a mãe fazia comigo de maneira oral”, lembra Helder. “O avô dela, meu bisavô, também contava muitas histórias para ela. Algumas vezes ela criava versões próprias, o que eu achava o máximo também (risos). Então, ela fazia um mix de contos - contos tradicionais e contos populares. Isso me pegou muito”.

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O espaço público como direitor do leitor

Com-par-ti-lha-men-to de his-tó-rias. Se pudéssemos definir o professor Helder com certeza seus alunos concordariam ser algo por aí, um "compartilhador de histórias”. Não há livro que passe despercebido se for mediado por ele. Dezenas de crianças viveram e vivem isso em espaços escolares – nas duas escolas que ele trabalhou – e nos informais, como o Confabulando e outros projetos que ele participa. O livro como um encontro, como um vínculo entre ele e as crianças e jovens. Ele é quem verbaliza: “Eu vejo a leitura como uma troca afetiva. Um diálogo, esse momento de estar ali com o outro, de desprender do seu tempo, dar sua atenção, seu carinho mesmo e seu afeto. É muito do que eu tento fazer com as crianças e com as pessoas que participam aqui no espaço de leitura”.

Outro ponto que Helder não deixa escapar na sua história pessoal com a leitura é frequentar a biblioteca pública de João Neiva. Nascido em 1987, criança-leitora nos anos 1990, ele conta que um dos problemas que ele vê hoje e não tinha nesta época era o excesso do digital nas infâncias. Então ir à biblioteca era parte da vida. “Geralmente eu fazia assim, quando chegava da escola - porque a minha mãe trabalhava o dia inteiro - dava conta das minhas coisas e depois descia de novo – falo isso porque eu moro no morro. Descia para ficar na biblioteca. E a biblioteca era um espaço muito vivo, porque a gente tinha pessoas que iam lá para ler, tinha pessoas que iam para fazer trabalho, reunião de grupo de escola. Hoje, infelizmente, não tanto mais assim”.

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O (não) sonho de ser professor

Helder Guastti com alunos

É bem lugar-comum, mas para um professor que é filho de professora, arriscamos que o desejo por ensinar se sonha desde criança, né? Mas não foi assim com Helder. “Quando eu tinha ali meus 11, 12 anos, queria trabalhar com alguma coisa de computação, que eu sempre gostei de tecnologia, e depois, na adolescência, eu pensava em trabalhar com alguma coisa relacionada à moda, jornalismo, alguma coisa assim.”

No final da adolescência, Helder começou a trabalhar e foi contratado como auxiliar do laboratório de informática de uma escola. Depois se tornou auxiliar administrativo do mesmo lugar. Foi habitando o espaço escolar, mesmo que em outro campo, que na hora de escolher a faculdade desejou pela pedagogia – que fez em um municício vizinho, Aracruz -, impulsionado por outro desejo. “Eu pensava que queria tentar romper com alguns estigmas que alguns profissionais colocam nas crianças, sabe? De ver a criança só como aluno, que tem que ficar quieta, que a gente tem que passar as coisas e ela tem que obedecer. Muita gente às vezes estranha quando observa uma aula minha, principalmente quando é algum momento de leitura: as crianças podem falar a todo momento. Tem quem pense ‘ah ele não está com controle dessa turma’. É quase isso mesmo (risos)”. 

Assumiu esse compromisso consigo mesmo e, a base, está em repertoriar com boas histórias, experiências artísticas marcantes e ampliar sempre que puder a experiência estética das crianças. O meio principal? A escuta. “Não vejo sentido em ser professor se eu falar assim: ‘olha, eu faço meu planejamento e vocês só vão ouvir’. Não tem sentido, porque a sala não é minha, a sala é nossa! A gente está ali um ano inteiro, compartilhando e faz parte oportunizar, desenvolver nelas essa segurança de falar. De se posicionar mesmo, de fazer as inferências, de fazer as colocações para que elas também agreguem nesse planejamento e nessas vivências do que a gente vai realizar em sala de aula. E assim eu também vou me transformando”, conta Helder, que puxa as famílias para a roda. “Desde o início do ano eu apresento o que eu almejo ali desenvolver e que elas têm tem que estar em parceria comigo”.

O livro é um lugar seguro na escola para ele para as crianças. Helder tem o livro como o objeto de vínculo com as turmas de escola ou com quem vai ao espaço Confabulando que tem em sua característica a frequência espontânea de crianças, jovens e suas famílias. Para ele, a literatura é um dos recursos para estreitar laços. “Eu sempre falo que o livro me dá muita segurança. Me sinto muito seguro de posse de um livro, dos livros que eu amo. As crianças até perguntam: ‘Mas você ama todos os livros que você traz?’, e eu respondo ‘eu tento escolher os que eu mais amo’.” O livro, principalmente o literário, está neste lugar de potencializar o encontro, o aprendizado, o período que Helder está com as crianças. “Isso faz parte também desse desenvolvimento da segurança delas, elas se entenderem como pertencentes aos espaços?”, completa. 

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O prêmio e o sucesso: ser um educador nota 10 (mesmo)

Helder Guastti, um educador nota 10

Ele também sonha em contribuir para ressignificar o valor do professor na sociedade. “Tem uma limitação do olhar social para o professor como só ‘aquele que dá aula de terminado jeito’”, diz Helder que levanta outro ponto difícil e importante: o território a que ele pertence. “Onde eu moro, onde eu vivo, muita gente me questiona a partir de um conceito de sucesso, algo abstrato. Para muita gente o sucesso é você sair da onde você é. Ouço ‘o que que você está fazendo aqui ainda? Você tinha que estar em São Paulo, teria muito mais oportunidades. E eu penso: 'gente, mas sucesso para mim não é sair daqui. Sucesso para mim é deixar uma transformação.”

Quando falamos do projeto “Como Diz o Outro”, pelo qual ele ganhou o Prêmio Educador Nota 10 em 2024, na categoria “Inovação e Tecnologia”, Helder diz “eu só mediei tudo. Quem fez foram as crianças”. Ele conta que em 2023, professor do 5º ano do Ensino Fundamental na EMEF Pedro Nolasco, a ideia era um projeto de leitura a partir da figura da Sherazade e as Mil e Uma Noites. Sempre no primeiro trimestre do ano é época de ampliar repertório, antes de entrar com o foco no projeto. E era uma turma muito participativa. Então leram o livro Irmãs da Chuva (Peirópolis, 2021), das autoras Gabriela Romeu e Anabella Lopez. Ela viu uma postagem dele no instagram e perguntou se ele queria que ela conversasse com as crianças. Ele disse ‘sim’ na mesma hora. Agendaram e fizeram uma conversa pelo googlemeet. E, no bate-papo, as crianças contaram para ela sobre uma expressão comum deles “como diz o outro…”, que não é “alguém” específico, mas esse “outro” que é a própria imagem da tradição oral, do que se passa ao outro, do que se diz, e do que fica. E ela disse então que eles poderiam fazer a pesquisa do ano com isso em mente. 

O projeto Como Diz o Outro, então, surge com essa vertente de resgate de contos. E elas quiseram criar um livro, confeccionado coletivamente. Foi lendo livros brasileiros com histórias e outros gêneros tradicionais (trava-línguas, ditados, adivinhas etc), com seus alunos do 5º ano do ensino fundamental. “A gente fez muita pesquisa com os familiares, muita pesquisa de recontos, sabe? De ditos populares, de provérbios. O que seus avós ouviam e hoje já se perdeu? Foi um entrelaçar lindo. Eu ia ouvindo ‘vamos botar isso no livro?’. Eu só fui costurando, mas o projeto é das crianças”. E perceberam interseccionalidades. “Fomos para a rua, para ouvir as pessoas que encontrássemos na rua. E entramos numa discussão de gênero: ‘a gente sabe que a nossa sociedade é uma sociedade muito machista, muito retraída. Há a possibilidade muito grande de ser mulheres que vão atender mais a gente’. Também é uma questão de construção social, né?”, conta.

À pesquisa das tradições do passado, o grupo usou o auge do “futuro”: interligência artificial. “Em 2023 não estava tão em voga a inteligência artificial. Uma ou outra discussão, mas não como hoje. Mas tinha a história das fotos manipuladas de uma adolescente e trouxeram isso para a sala de aula, as crianças revoltadas. Ficamos no debate: por que fazer isso? Eles são maus, existe gente má no mundo assim. Uma menina falava: ‘é uma coisa que pode fazer tanta coisa, para que fazer isso?’. E lançaram para mim por que que a gente não tenta usar isso no nosso livro?’”.

O projeto ganhou outra dimensão e incorporou uma dualidade entre o tradicional e a contemporaneidade. Aprenderam juntos como fazer pesquisa, como usar IA. Por exemplo aprender a escrita de uma maneira que virasse os prompts de comando para, então, obterem a ajuda de fato. “Muito na tentativa e erro e uma outra criança disse: ‘nossa, o nome é inteligência, mas ela é meio burra, né?;”. E daí foram procurando as imagens, outras informações e cruzando com as pesquisas com as pessoas da cidade. O livro está disponível em PDF aberto e pode ser acessado aqui.

 Confabulando leituras e relações

Com o espaço de leitura comunitário, mãe e filho se sentem continuando um trabalho. A “Tia Rogéria” é conhecida na região há muito tempo. A educadora Rogéria Guastti já foi responsável pela igreja da comunidade, diretora da creche e sua casa era o espaço de estudar de muita gente. Tudo no Bairro de Fátima, onde moram ela e o filho até hoje. Isso fez parte da vida de Helder e, conforme ele foi se tornando um pesquisador do livro para a infância contemporâneo, com ações online e nas movimentadas redes sociais, ele também se tornou um ponto de referência. "Pensei: você tem uns livros muito bons, só que só seus alunos têm acesso. Isso não é justo. E o que a gente pode fazer?". 

As crianças já adoravam o espaço aberto da casa, brincavam com o cachorro da família, se sentiam acolhidas. O território é um encontro de gerações, muitos ali têm histórias entrelaçadas com as deles para contar. Em 2017, então resolveram abrir o espaço oficialmente como Confabulando Leituras – Espaço de Leitura (hoje com conta no IG @confabulandoleitura) resolveu abrir oficialmente, caminhando para se oficializar também como biblioteca comunitária. Recebem pessoas até de cidade vizinhas e, o mais importante, valorizam quem mora no bairro e espantam o preconceito típico dos lugares com população de baixa renda. “Eu digo: esse espaço de leitura tem que ser lá onde ele tá mesmo, porque quem quiser ter a vivência tem que ir lá, não é a gente que tem que descer para oportunizar vivências. Aqui no morro que ele tem que acontecer, com os meus meninos mesmo”, defende.

(Texto: Cristiane Rogério)

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