Saúde mental: quando pais e cuidadores não estão bem

08/09/2025

“Na vida real, mamãe é como uma rainha presa em uma torre”. 


A fantasia não é capaz de consertar a realidade - mas talvez possa mostrar outras formas de lidar com aquilo que dói. Em A rainha da torre (Companhia das Letrinhas, 2025), um livro comovente assinado pelas autoras Karin de la Vega e Fátima Ordinola, ambas peruanas. Na história, a menina tenta se conectar com a mãe, que parece enclausurada em si mesma. 

O que a paralisa é o medo. Um medo que “Sai pelos lábios/ pelas mãos,/ pelos olhos dela”. 

 

Ilustração de 'A rainha da torre'

O medo da mãe irradia para a filha em 'A rainha da torre' (Companhia das Letrinhas, 2025)

A menina tenta alcançar essa mãe tão fechada, que não a leva para o parque nem para passear. A pequena às vezes até finge que não quer sair de casa só para ficar com a mãe contando histórias, pois é a fantasia o fio invisível que as conecta. Quando, juntas, elas passeiam por outros mundos, explorando montanhas e voando em dragões, é que os medos ficam para trás e a menina consegue sentir a mãe próxima de uma outra maneira.

De forma delicada, o livro levanta muitas questões, como o medo desmedido que pode paralisar crianças e adultos, ou o poder que a fantasia tem de tornar mais suportável a realidade. E levanta principalmente uma bandeira atual: o que acontece quando os pais e cuidadores é que não estão bem e muitas vezes não têm condições de cuidar? Uma pauta necessária, em um momento no qual nunca foi tão necessário falar sobre a saúde mental na parentalidade, sobretudo a saúde mental das mães. Uma pesquisa realizada em 2024 pela Kiddle Pass em parceria com a B2Mamy , com 1.868 mães brasileiras revelou que 9 entre 10 sofrem burnout parental, aquele estado de esgotamento caracterizado tanto por exaustão física quanto mental. 


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Não, a mamãe não está bem 

“A saúde mental dos pais funciona como um espelho regulador para os filhos: influencia não só o aumento do risco ou da proteção em relação a transtornos, mas também prediz a qualidade do vínculo e do ambiente familiar”, explica a psicóloga Natalia Pinheiro Orti, professora na The School of Life. Ela aponta a regulação emocional como um dos pilares essenciais quando se fala em saúde mental, uma vez que as crianças aprendem a regular as próprias emoções observando tanto a maneira como os pais lidam com as próprias emoções quanto com as emoções dos filhos. “Há um maior risco de pais ansiosos transmitirem maior insegurança na exploração do mundo, por exemplo. Pais deprimidos tendem a apresentar menor responsividade ao comportamento dos filhos, podendo gerar sentimentos de rejeição ou culpa na criança”, completa Natalia. Em A rainha da torre, a menina descreve que a mãe está sempre assustada e quando a criança se pendura em uma árvore, o medo - que é da mãe, não dela - a alcança: ‘Não suba aí! / Cuidado, você pode cair”. 

Pais e mães com questões de saúde mental ou muito sobrecarregados têm ainda “mais probabilidade de oscilarem entre distanciamento e irritabilidade (o que fragiliza a segurança emocional do filho), além do risco de serem excessivamente rígidos ou permissivos, o que confunde a criança quanto aos limites”, explica Natalia. Mas como driblar essa situação quando a própria parentalidade costuma aumentar imensamente a sobrecarga, especialmente em um cenário em que contar com redes de apoio parece cada vez mais improvável? As demandas do cuidado não só com a criança como também com a casa costumam recair na família nuclear, especialmente na mulher. As famílias de hoje já não contam mais com o suporte da família estendida, como era há algumas décadas - a parentalidade parece ter se tornado mais solitária. 

Vale lembrar ainda que todas essas demandas do cuidado da criança acontecem junto com a privação de sono (especialmente para pais e mães de crianças pequenas) e normalmente com uma redução significativa do espaço para si. Tudo fica para depois: comer com calma, fazer exercício, ter um tempo de lazer fazendo coisas para si - não pensando apenas pensando na diversão das crianças.  Isso sem falar em todas as preocupações que se tornar pai ou mãe acarreta, que ganharam até um nome: ansiedade parental. Ter filhos é se preocupar constantemente com a segurança e o bem-estar da criança, com a educação e as perspectivas de futuro e mais. Enquanto isso, sobra zero espaço para o autocuidado e, ironicamente, são as preocupações constantes dos adultos que se tornam, por si só, um motivo de preocupação.

 

Toda interação entre pais e filhos atua, mesmo que os pais não tenham consciência disso, como um processo de modelagem de comportamentos, os quais a criança irá aprender e internalizar ao longo do tempo”, Natalia Pinheiro Orti, psicóloga

 

Mas nem tudo gira em torno dos filhos


Em A pequena violinista (Pequena Zahar, 2025), primeiro livro infantil de Jon Fosse, ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 2023, publicado no Brasil, acompanhamos a saga de uma menina que tenta trazer seu pai de volta para casa. Em uma narrativa carregada de simbolismos, muito característica do autor, ela consegue ver onde o pai está olhando através das próprias mãos. E ela o enxerga perto do mar, molhado, exausto, quase como um náufrago à deriva. O pai que deveria ser quem cuida é quem precisa de cuidado. E esse é um peso que as crianças não tem a responsabilidade de carregar - mas muitas vezes carregam. E a literatura pode ser um caminho para abordar essa inversão de papéis. 

Ilustração de 'A pequena violinista'

A menina parte em busca do pai, para trazê-lo para casa em A pequena violinista (Pequena Zahar, 2025)

É verdade que a parentalidade traz uma série de novas demandas e preocupações. Mas antes de serem pais ou mães, cada cuidador é uma pessoa, com sua própria jornada, seus medos, suas questões. Para a psicóloga e psicanalista Fê Lopes, tanto A rainha da torre quanto A pequena violinista trazem essa figura parental de uma forma mais real do que idealizada. “Os dois livros falam de pais de uma forma muito humana. Não são heróis sem falhas, sem crises, que nunca ficam tristes ou soltam pum – pra lembrar das princesas – mas sim pessoas atravessando suas questões, vivendo sua jornada de vida, onde a parentalidade faz parte”, explica. 

Ao longo da vida, independentemente de ter filhos, todos nós enfrentaremos nossas questões. Passaremos por períodos mais ou menos desafiadores, teremos mais ou menos responsabilidades, nos sentiremos mais ou menos felizes. Faz parte. Seremos atravessados por conquistas e perdas. Por mudanças e recomeços. Por lutos e alegrias. “A depender do momento de vida, essas questões podem se enganchar como lã que prende na maçaneta da porta. E aí a gente não consegue sair sem desfiar um tanto da blusa. Às vezes ficamos presos... e nesse momento a gente pode precisar de ajuda. A ‘blusa enganchada’ de adultos sem filhos muitas vezes é a do trabalho, do projeto de vida, dos relacionamentos, das doenças. A dos pais, no geral, se engancha pelas questões na criação dos filhos, na mudança no relacionamento do casal depois que eles chegam. Mas todas as blusas que se engancham na maçaneta vão desfiar em direção às nossas expectativas, sejam elas blusas de pais ou não pais”, aponta Fê. Para ela, há muitas expectativas que nós mesmos nos impomos. Por isso, focar mais no “possível” do que no “ideal” é um bom caminho para tirar um pouco os pesos dos ombros. 

Fora de serviço: quando os pais não estão 

Ilustração de 'A rainha da torre'

A fantasia é o território para uma nova forma de conexão entre mãe e filha em A rainha da torre (Companhia das Letrinhas, 2025)

E o que acontece quando os cuidadores principais, por qualquer motivo, não estão disponíveis para cuidar da criança ou sequer para se conectar com ela? Muitas vezes, as crianças trocam de papéis com os pais e podem se sentir responsáveis por cuidar sozinhos de si mesmo e dos próprios pais. Esse fenômeno tem até nome: parentificação. “Quando crianças ou adolescentes assumem responsabilidades que não são cabíveis para seu momento do desenvolvimento precocemente, importantes prejuízos acontecem. Sobrecarga emocional, dificuldade de se cuidar, tendência à culpa crônica e a padrões relacionais desequilibrados na vida adulta. É uma inversão de papéis que pode ser traumática, ainda que, muitas vezes, silenciosa”, alerta Natalia. Muitas vezes a criança que assume responsabilidades que não são dela é vista com bons olhos, como uma criança “madura” e “responsável”. Mas, talvez no longo prazo, se tornem adultos com dificuldade de pedir ajuda, que tentem dar conta de tudo sozinhos, que assumam responsabilidades alheias. 

Fê lembra que são os pais que determinam o ritmo da casa, que são eles as figuras que estabelecem ritmo e previsibilidade ao cotidiano das crianças, o que é essencial para que elas se sintam seguras. Independentemente do que aconteça lá fora, das dificuldades, tristezas, preocupações que atravessem os pais, eles continuam exercendo esse controle sobre o ambiente doméstico. “Pais que encontram algum prazer na rotina que vivem, sem a ilusão de que vivem isso o tempo todo, oferecem um ambiente de maior realização, e aí os filhos se sentem menos obrigados a ser quem realiza esses pais e podem desfrutar das suas vidinhas”, explica. Ou seja, quando os pais têm uma visão de que momentos de provações não duram para sempre - assim como os de alegria também não -, eles navegam melhor pelas tempestades, porque sabem que existe essa alternância entre momentos de alegria e tristeza. “O duro é quando não há movimento, quando a gente fala de ensimesmamento como acontece com o pai da violinista. Porque aí estamos falando de pais com pouca disponibilidade emocional para qualquer coisa. E crianças precisam dessa disponibilidade, mesmo que ela venha com ‘buracos”, explica Fê. 

Para ela um dos caminhos para que essa conexão entre pais e filhos aconteça, mesmo quando o adulto está atravessando momentos difíceis, é dar acesso à criança sobre o que está acontecendo, nomeando coisas como: “mamãe está triste, mas não é sua culpa. Mamãe está cuidando disso” Assim, o adulto retoma o processo decisório daquilo que compete a ele, cuidando da rotina da criança e devolvendo a ela seu “tempo” e suas preocupações de crianças. “O adulto não precisa ser um super herói e passar por cima daquilo que está vivendo, pelo contrário. É preciso assumir suas dores e pedir ajuda para outros adultos e redes de cuidados – escola, serviço social, de saúde – que também têm a missão de cuidar e educar uma criança. Sabe a história da vila? Então, nesse momento ser adulto cuidador de uma criança também é ser quem chama a vila pra ajudar.”, resume Fê. 

Lembre-se: heróis que derrotam dragões sozinhos só existem nos contos de fadas, e faz parte se repertoriar com eles, ajuda na maturidade emocional. Mas, as crianças se inspiram também em seres humanos de verdade: com medos, inseguranças, dúvidas, falhas. E assim como faz a menina de A rainha da torre, pode ter certeza: seus filhos te abraçam com tudo aquilo que você carrega em si. 

Conheça os sinais que indicam a saúde mental dos pais ou cuidadores principais precisam de cuidados


Natalia aponta os sinais de que algo não está bem com pais e cuidadores. Eles servem se alerta não apenas para os próprios pais, mas para outros adultos que convivem com eles:

o    Mudanças emocionais persistentes (tristeza constante, irritabilidade excessiva, apatia);

o    Ansiedade intensa ou preocupação constante com os filhos;

o    Dificuldade de dormir ou dormir demais;

o    Perda de interesse por atividades antes prazerosas;

o    Queda significativa no rendimento profissional;

o    Sentimento de incapacidade, culpa exagerada (“sou um mau pai/mãe”);

o    Excesso de rigidez ou ausência de limites consistentes;

o    Desatenção às necessidades emocionais da criança;

o    Evitar amigos, família ou atividades coletivas;

o    Sensação de não suportar mais a rotina com os filhos;

o    Distanciamento afetivo (“faço no automático, sem sentir nada”);

o    Ideação ou tentativa de suicídio. 

 

 

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