
Um novo olhar para um velho mundo: a importância das narrativas não-eurocêntricas
Histórias indígenas, africanas, asiáticas...há cada vez mais espaço para formatos e lógicas que não se adequam às narrativas eurocênticas
À primeira dupla de páginas da história, um detalhe da ilustração nos remete a uma imagem ancestral africana: Sankofa, conceito e símbolo da tradição Adinkra dos povos Akan (dos países Gana e Costa do Marfim), que vemos na forma de um pássaro que está caminhando para frente, mas com a cabeça voltada para trás. Segundo a tradição, a imagem sugere um movimento de retorno ao passado para um futuro melhor: a sabedoria de quem veio antes, para que seja possível adquirir conhecimento.
Compondo o ambiente, na ilustração do rondonense Josias Marinho o verde impera e mostra céu, rio, casas em palafitas, crianças brincando. Com ela, o texto sempre doce e cuidadoso de Madu Costa, uma das pioneiras na escrita dedicada a narrativas negrorreferenciadas voltadas para crianças e jovens. É ela que nos conta que o menino da história de Tudo É Mar (Brinque-book, 2025) era do rio mas estava sempre de olho no mar. “Mário sonhava ser rio e no mar desafiar.”
De ouvidos atentos nas conversas dos adultos, a curiosidade pelas histórias de seus ancestrais tomava seus pensamentos. Assim como Madu era quando pequenina, que fazia uma pergunta atrás da outra à mãe.
A narrativa continua num navegar de Mário pelas histórias narradas pela mãe e por uma descoberta marcante: a família tinha um tesouro.
“Eles não vieram a passeio para o lado de cá. Eles trouxeram. A bagagem da memória conhecimentos, cantigas, danças, rezas e benzimentos. E também diversas tecnologias para extrair e transformar o ouro, o ferro, o barro, a madeira. E alguns deles conseguiram trazer escondidos verdadeiros tesouros.
Nossa mais velha trouxe de lá uma enorme concha do mar, que é o nosso talismã.”
E assim embarcamos de vez nesta viagem entre os autores constroem ora com texto, ora com imagens, numa belíssima narrativa de amor e autoconhecimento.
O Blog Letrinhas conversou com Madu Costa e aqui seguem alguns trechos deste bate-papo:
Madu Costa: Aí vai ser difícil… a gente tem quantos dias para conversar? (Risos)
Madu: Ah, sim! (Risos) A gente faz umas pausas. Então, menina, essa história tem a ver com a minha história. Eu sou aqui de Belo Horizonte, não é? Minas Gerais, um estado central, não tem mar. É um aquífero. A minha criança interior sempre buscou o mar. Desde que eu era muito novinha, quando as montanhas ainda tinham picos. Eu moro num bairro que dá para ver, é próximo - mas é o “próximo” de mineiro, né? (Risos) - a Serra do Curral. Fica logo ali. Ela tinha um pico ou cume, como chamávamos. É um dos cartões postais de Belo Horizonte. E eu ficava sentada na frente da minha casa, olhando para a Serra do Curral e imaginando, tendo quase certeza de que tinha outra de mim do outro lado da montanha. Sabe? E que se eu tomasse um impulso, sair correndo, eu ia subir a montanha, ia descer, encontrar com essa minha outra e a gente ia chegar no mar.
Madu Costa: Então, essa imagem da menina de lá, a menina do outro lado, que era a outra versão de mim mesma, era que fazia eu desejar muito mar. E uma vez eu ganhei uma concha. E aí me disseram que se eu pusesse a concha na orelha, era como se eu estivesse no mar, ia ouvir todos os sons de dentro do mar. E veio a história do Mário. (Risos), eu ridícula na escolha do nome do menino que é Mário, que é Rio e é Mar. Mas eu fiz de propósito. E o tio que é Omar.
Madu Costa: É lindo, não? Então, esses dois personagens que são masculinos, na verdade… sou eu! Como eu privilegio muito as meninas nas minhas histórias, e já tive cobrança de leitores, comecei a levar em consideração. Fala de criança toca na alma né? Sou uma defensora das infâncias.
Madu Costa: Eu sempre fui uma cabeça muito inquieta daquelas crianças das “mil perguntas”. Enchia o saco da minha mãe, mas eu ficava numa perguntação danada que ela falava: "Ô, minha filha, dá um tempo. Você enfia uma pergunta na outra, eu não consigo responder nem a primeira, quanto mais a última". E aí ela me convencia que nem sempre era importante ela responder, que era importante que eu continuasse perguntando, sabe?
Madu Costa: Já meu pai mesmo falava: "Judite” - minha mãe chamava Judite, meu pai chamava Eugênio - “essa menina é poeta”. E eu ficava achando que aquilo devia ser o máximo, né? Eles tinham pouca escolaridade e um letramento infinito. Nos introduziram à musicalização, à dramaturgia, sabe? Essa criança investigativa, que quer saber de tudo, que gosta de ficar perto dos adultos para poder aprimorar a linguagem, sabe? Que quer falar corretamente, que quer saber da história da mãe, do pai, de todo mundo.
Madu Costa: Vi uma única vez a minha avó paterna, Aurora. Que ela esteve aqui em casa, mas ela me pareceu assim tão inatingível que eu não consegui nem abraçá-la. Negra de pele bem clara, com cabelo branco de coque atrás, sabe?
Madu Costa: Do interior aqui de Minas mesmo, um lugar chamado Rio Doce. Então, eu sou aquela menina carente de vó. E tinha as histórias da avó da mãe da minha mãe, que era a avó Ana Egídia, cujo apelido é Nica, que ela era indígena. Aí tinha aquela história que depois mais tarde a gente foi saber, da indígena “que foi pega no laço”. Então, era a avó indígena que foi pega no laço, casada com o avô Pedro, que era negro misturado com espanhol. A família é essa salada. Essa minha avó Aurora era filha bastarda de um parente de Afonso Pena. Então, ela era Aurora Pena. Mas casou-se com José Caetano da Costa, que era um ex-escravizado, negro retinto, maravilhoso. Ele retirou o sobrenome Pena para não trazer para as novas gerações o sobrenome da bastarda. Ó que pena. (Risos) Ficamos 'depenados'. Só para não perder o trocadilho (risos). Também não sei não se a gente ia querer o sobrenome. Eles foram sábios. Ninguém tem pena disso mesmo (risos). Então, essas minhas histórias, especialmente essa do Tudo é Mar, ela conta muito de mim mesma. Eu só fui conhecer o mar quando eu tinha 28 anos de idade.
Madu Costa: E aí eu já era casada, foi Guarapari. Na verdade, deixa eu ver se foi foi Espírito Santo, mas acho que foi Mucuri. [Mucuri é um município na Bahia, divisa com Espírito Santo]. Enfim, mas depois eu fui em vários mares, inclusive no Oceano Índico, lá em Moçambique, e no Atlântico, lá em Angola, já levei caldo de de rio, de mar bravo, mas amo ir para ilha de Itaparica, perto de Salvador, que é como se fosse uma água de útero de tão morninha e quietinha que você entra lá e não quer sair nunca mais, sabe?
Madu Costa: Tinha a ver um pouco com com essa com uma curiosidade de si, da sua família, como o Mário: o que tem do lado de lá tem a ver comigo.
Madu Costa: Não, eu não tinha essa consciência. Eu não tinha na infância consciência racial. Eu fui carimbada de parda, e aqui dentro da minha casa a gente não discutia. A gente nem sabia que era negra. A minha mãe e o meu pai falavam assim, ó, vocês se comportem, hein? Porque ó, a cor, sabe, né? Então era tudo muito assim, muito reticente. Os cabelos eram sempre trançados, né? Eu sou irmã de mais quatro, então a mãe trançava o cabelo das meninas todas, porque chegava na escola, não podia passar vexame. Estava sempre molhando aqui na frente para ajeitar. Mas a minha mãe e o meu pai eram extremamente cuidadosos com a gente. Nós tínhamos as melhores pastas de couro, sapato vulcabrás engraxado… Meu pai sábado passava a manhã engraxando sapatos de todo mundo. Mãe lavava os uniformes e era assim, um cuidado todo especial.
Madu Costa: Amor, amor, amor da melhor qualidade. A minha mãe era tão amorosa que no aniversário de cada uma de nós, ela trabalhando o dia inteiro - ela era enfermeira, trabalhava em hospital, depois foi trabalhar no posto de saúde. Ela ia para a máquina de costura, sem saber costurar, ela ia fazer um vestido torto, mas fazia um vestido. Ainda bordava, passava algumas noites preparando esse vestido, durante a noite e de manhã ela punha na bandeja e ia acordar a gente na cama com um café, com os biscoitinhos, e o vestido. Quando eu me torno adulta, que eu começo a fazer pesquisa sobre sobre minha ancestralidade, sobre acabar com o perigo da história única. Vou buscar em outras fontes, outras referências para entender a história afro referenciada, por exemplo. Aí eu começo a ficar assim: "Ah, então é isso. Então é por isso que eu me sentia assim. O tempo todo eu fico espantada. Então, isso é isso que é Ubuntu? Isso que é comunitarismo? Isso que é cooperativismo?"
Madu Costa: Eu fui criada dentro desses modus operandis. Nesta metodologia. Aqui em casa, a hora que ia distribuir o refrigerante para os meninos, a mãe quase que pegava uma régua, os copinhos enfileirados e media para ninguém ter uma gota a mais nem a menos que o outro. Se tivesse uma maçã, uma banana e uma laranja, ela falava assim: "Vou fazer uma saladinha de fruta". Enfim, essas marcas me atravessam, estão na minha escrita, é meu jeito de dizer para as outras crianças e para minha criança interior que o povo preto é lindo. Povo preto tem uma ética maravilhosa. Não acredita mais nisso que contaram para gente aí esse tempo todo, não. Pode se olhar no espelho e ficar feliz com o que você vê. Você é linda, não tem que comparar a sua beleza com de outra etnia. Eu falo isso para mim, falo isso nas escolas. Eu sei sempre afirmo as qualidades.
Madu Costa: Ele pega as referências dele lá de Rondônia para fazer o rio de Rondônia, as palafitas, não é? Ahhh quando ele pega o menino fazendo a concha com as mãos, eu falei: "Mas gente, mas esse cara de maravilha". Olha é isso aí, Cris. Menina, Eu chorei demais já de olhar esse livro. Ainda não me acostumei com o exagero de beleza dele, sabe? Nem quero, né?
Blog Letrinhas: E este texto você tinha havia muito tempo?
Madu Costa: Nossa, menina, essa pergunta é tão difícil. Se você vir o tanto de caderninho que eu tenho, tanto de história dispersa para lá e para cá, poema, crônica, ideias, que agora a minha cabeça cismou que eu componho música. Eu saio na rua e eu vejo uma cena, daí a pouco eu tô cantando a cena. E não é que eu vou eu vou fazer um show agora dia 20 de setembro? [O show será na companhia do músico Tininho Silva, no Teatro da Biblioteca Pública Estadual na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte]. Só de música autoral!
Madu Costa: Não sei, me deu essa coisa, né, para Com certeza. É. É, mergulhar no mar de dentro.
Madu Costa: É. E eu acreditava no meu pai.
Madu Costa: Ó, eu vou eu vou ali viver umas outras coisas e volto. Te chamo! (risos).
(texto Cristiane Rogerio)
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