
Escolas plurais: conheça a Educação quilombola e a Educação Itinerante
Inspirados pelo livro "Amanhã", de Lúcia Hiratsuka, mostramos a diversidade de escolas de educação infantil em comunidades quilombolas, zonas rurais e assentamentos
Ma-quei-ra. Já ouviu falar? Se você não está familiarizado com costumes do Amazonas, talvez não. O que é? Uma rede de dormir, de descansar ou até mesmo, de ouvir histórias, de ter boas ideias. Márcia Kambeba, autora indígena do povo omágua/kambeba, pesquisadora acadêmica e ativista diz que uma deitadinha no embalo da maqueira é infalível: o que estava travado no pensamento se desenrola se você tiver disposição para ouvir.
Será que ela conta histórias também?
Emoa conversa com o reflexo da lua e cuida da terracom carinho em Maqueira de Tucum (Pequena Zahar, 2025)
Claro que sim! Nesta aqui, tudo se passa na aldeia Tuyuka, onde havia uma bela kunhã, filha do cacique, guardiã das memórias e contadora de histórias. Seu nome era Emoa e todos iam atrás de suas palavras, de sua sabedoria. A beleza de Emoa se assemelhava à beleza da terra, à serenidade dos rios e à força das matas. E seu jeito de narrar era único e especial. Um dia, uma epidemia atingiu muitas pessoas no lugar e kunhã não resistiu. E é aí que começa a história desta rede que, com certeza, não é uma rede qualquer e que, também por isso, se tornou uma tradição.
A maqueira desde sua produção não é como as outras: seu trançado é feito de fibras de árvores amazônicas. No novo livro de Márcia, ela é feita de tucum e por isso o nome da obra, Maqueira de Tucum (Pequena Zahar, 2025), comovente texto que ela assina ao lado das belíssimas imagens da artista visual Michelle Cunha. É um grande encontro que marca a região Norte do país: Márcia nasceu na aldeia Belém do Solimões, do povo Tikuna, no estado do Amazonas. É geógrafa pela Universidade do Estado do Amazonas e doutora em linguística pela Universidade Federal do Pará, estado em que ela hoje reside, no município de Castanhal. Michele nasceu em Marituba, também no Pará, desviou-se para o Centro-Oeste morando em Brasília, mas voltou para o estado natal, mais especificamente em Soure, Ilha do Marajó, onde vive atualmente. É impressionante e lindíssima a forma como Márcia e Michele se uniram nesta narrativa, em que palavras e imagens têm seu lugar preciso tanto no todo da história, como nos detalhes. Sentimos o respeito aos costumes e à ancestralidade, ao mesmo tempo em que reconhecemos a marca artística na poética de cada uma das linguagens, em cada uma das autoras.
O Blog Letrinhas conversou com Márcia sobre os bastidores do livros e você confere alguns trechos da conversa abaixo:
Márcia Kambeba: Ele nasce, de fato, de uma realidade da minha infância, né? A minha avó costumava contar história. Aqui, ó, numa maqueira como esta (e então Márcia sai da sala em que estava em nossa conversa via zoom, e vai para outra em que uma de suas maqueiras está, especialmente para que eu veja a textura, a beleza do que estamos falando). Ela é linda. Então aqui a gente deita, ó.
Márcia Kambeba: Então, a minha vó deitava aqui assim como eu tô, e eu deitava com ela aqui do lado, e ela me contava histórias. E ela só parava de contar a história quando o a Matinta assobiava. E quando a Matinta sobeava, ela dizia que era a hora de era a hora de parar de contar histórias e e a gente deixava para outro dia. Então, eu cresci ouvindo história na maqueira de tucum, embalando na maqueira de tucum, dormindo na maqueira de tucum. E dizia: "Olha, a maqueira tem espírito", os fios dela são de fibra de tucum, é uma fibra mesmo. Essa fibra é tirada de uma palmeira chamada tucum. E a gente acredita que toda vez que alguém deita na maqueira de tucum, o espírito da palmeira - que se chama Emoa na língua Kambeba - abraça a pessoa que deita na maqueira, e então sopra histórias. É a pessoa tem que contar. Por isso que, muitas histórias são contadas, a gente chama, “num sopro só”. Ou seja, de uma vez só. Porque não vai repetir. Tem gente que vai chamar de maquira. Maquira significa rede em tupi-guarani e nhengatu. E na língua tikuna, que é do povo que constrói ela, se chama nai'i napa ou naca. Essa em que estou é construída pelos tikuna, na aldeia que eu nasci, eu trouxe de lá. Quando eu tô cansada venho para cá eu deito, quando eu quero minhas ideias que fogem da minha cabeça.
Márcia Kambeba: A Débora mandou mensagem para mim eu eu disse: "Mas o que é que eu vou mandar para ela?”, e aí eu deitei aqui. Olhei para maqueira e disse: "É isso mesmo. Eu vou trazer minha memória". Eu vou trazer a minha avó para essa história, Maqueira de Tucum. Aí surgiu o livro.
Márcia Kambeba: E que está chamando a atenção das pessoas”mas o que que é Maqueira de Tucum?”…
Márcia Kambeba: Eu dei um pulo dessa dessa maqueira aqui, eu fui para para ali para o computador e escrevi rapidinho. Como eu te digo: as histórias são sopradas, então as minhas histórias não nascem por pedaço. Não, ou eu sento, escrevo ela toda, é como poesia. Eu sonho também. E aí eu mandei para ela. Então ela começou a procurar a pessoa que ia ilustrar, até que achou a Michelle Cunha.
As belas ilustrações que contam a história de Emoa em Maqueira de Tucum (Pequena Zahar, 2025)
Márcia Kambeba: Eu gostei muito porque foi uma ilustração que respeitou o texto, não foi uma ilustração, uma ilustração conversada, porque a própria Débora fazia as reuniões para tirar as dúvidas e tudo. Eu mandei foto do indígena da aldeia que eu nasci é, fui lá na roça dele fazer a foto, a foto do tucunzeiro, os grafismos do meu povo, como o meu povo se vestia, como as crianças se vestiam, como as mulheres adultas se vestiam, os homens… a arara (imagem belíssima num ponto de virada da história). Os animais do livro são típicos do meu povo, a Michele trouxe uns outros da região dela, mas tudo na Amazônia. Fiz a foto da tiara que eu tinha, que a gente usa madeira, com o fio do tucum e as sementes. Michele não foi só fiel, a Débora também, foram fiéis à territorialidade do povo, ao sagrado do povo. Ela respeitou o sagrado, que está para além de religião. Ele está em qualque lugar, numa formiga, ele tá num num animal de grande porte, pequeno porte, numa folha que cai no rio. Ela respeitou a tessitura da cultura, da identidade, do pertencimento, da territorialidade do povo. Essa tessitura presente, que a gente sente na cultura. Então, quando uma criança omaguá-kambeba abrir o livro, ela vai dizer: "Eu me reconheço nele".
Márcia Kambeba: Sim. Esse artefato também está permeando esse universo. Porque nós somos um povo de troca, nós fazemos troca. Um troca saber com o outro, ou seja, aquele que não tecia, ele passa a aprender a tecer com o outro.
Márcia Kambeba: A maqueira, ela não tá aqui só representando um artefato que você deita, dorme, acorda. A maqueira representa esse elo entre o mundo físico e espiritual. Representa a tessitura das memórias, a tessitura das afetividades, a tessitura da identidade, do pertencimento, das territorialidades, da continuidade da resistência. Quando uma pessoa abre o Maqueira de Tucum para ler, não está lendo uma história, ela tá lendo e vendo um uma forma de viver. Inclusive a responsabilidade de sermos continuadores de um legado. De continuar tecendo. E depois que eu me for desse mundo, outros vão continuar tecendo.
Márcia Kambeba: As pessoas vão passar a ver até a sua própria rede, mesmo que ela seja de pano, vão passar a ver como sagrado. Quando você deita numa rede, está deitando num artefato que vai abraçar o teu corpo. E que, se você permitir, você vai ouvir. Porque nós aprendemos que linguagem é só o que é falado ou o que se escreve. Mas a linguagem é também do silêncio. A linguagem é também do sentir.
(Texto: Cristiane Rogério)
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