Escrever para adultos é também escrever para crianças?

06/08/2025

Paulo Leminski (1944-1989) é o autor homenageado da 23ª edição da Flip, a Festa Literária de Paraty, que aconteceu entre os dias 31 de julho e 3 de agosto de 2025. Leminski, que também era músico, jornalista e tradutor, ficou conhecido por inventar uma nova forma de fazer poesia sob forte influência dos haicais, dizendo muito com pouco.Transitando entre a poesia concreta e o lirismo de suas canções, experimentando (ou seria brincando?) novas formas de criar versos.

Toda Poesia (Companhia das Letrinhas, 2023), obra que condensa a trajetória poética de Leminski, ganhou uma publicação voltada ao público infantil com O bicho alfabeto (Companhia das Letrinhas, 2014), que foi ilustrado por Ziraldo (1932-2024).

Não é a primeira vez que um autor homenageado da Flip tem um livro dedicado às crianças. Hilda Hilst, autora homenageada da 20ª edição, assina Eu sou a monstra (Companhia das Letrinhas, 2021), seu único poema infantil escrito para o filho de um grande amigo, que nessa edição foi ilustrado pela mexicana Ixchel Estrada. 

Ilustração de 'Eu sou a monstra'

Eu sou a monstra: a única obra de Hilda Hilst escrita especialmente para crianças

Entre ter obras adaptadas para o público infantil, como aconteceu com as poesias de Leminski, ou escrever intencionalmente para crianças, como fez Hilda, há muitas oportunidades para pensar sobre como tantos autores conseguem transitar entre públicos distintos. É possível refletir se há mesmo uma linha que determina e separa a literatura infantil da literatura para adultos ou se apenas estamos contemplando o mesmo objeto -por vezes colocado em gavetas diferentes -, sem abrir os olhos para suas múltiplas possibilidades.

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Para adultos ou para crianças: tudo pode ser lido por todos?

Para a professora Fabíola Farias, mestre e doutora em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais e atuante em diversos grupos de pesquisa sobre livros, o que muitas vezes torna um livro infantil não é o texto em si, é o produto editorial. “Há textos que foram escritos e publicados sem ter na infância uma recepção ideal, mas que foram editorialmente adaptados”, explica. Ela cita como exemplos os livros de José Saramago (1922-2010) publicados pela Companhia das Letrinhas: O lagarto (Companhia das Letrinhas, 2016), com ilustrações de J. Borges; O silêncio da água (Companhia das Letrinhas, 2022), com ilustrações de Yolanda Mosquera; Uma luz inesperada (Companhia das Letrinhas, 2022), com ilustrações de Armando Fonseca; O primeiro barco (Companhia das Letrinhas, 2023), com ilustrações de Amanda Miranjo, e mais recentemente, Um azul para Marte (Companhia das Letrinhas, 2025), com ilustrações de Claudia Legnazzi.

“Os textos são exatamente os mesmos. Mas são transformados pela presença da ilustração ", explica Fabíola. Para ela, ainda que não seja o único recurso, a ilustração é o mais importante para ampliar as possibilidades de acesso a textos mais densos, como crônicas ou os contos. “Além de trazerem respiros aos escritos, as ilustrações criam outros convites para olhar para esses textos e dão fôlego para que leitores menos experientes também possam fazer essas leituras”, explica Fabíola. 

Há ainda outros recursos que podem ajudar a converter um texto originalmente pensado para adultos em uma obra que também dialogue com as crianças. O design, ou seja o projeto gráfico, é capaz de deixar o texto distribuído de uma forma mais leve, criando mais quebras de parágrafos,  mais respiros e mais viradas de página, para deixar a leitura mais dinâmica. Os paratextos - que incluem não apenas o título e o subtítulo, mas também as notas explicativas, o prefácio, ou posfácio - também são repensados para facilitar a leitura e atrair a atenção dos pequenos leitores. “É muito interessante, por exemplo, quando o texto da quarta capa se endereça a crianças, pais ou professores, chamando para a leitura”, comenta Fabíola. 

Muitas vezes há necessidade ainda de repensar o formato do próprio livro, a começar pelo tamanho, pela escolha do papel, da capa. E há ainda o cuidado sobre a forma de catalogação. Um livro catalogado como infantil tende a circular em um determinado espaço, vai ser colocado em uma seção específica em bibliotecas e livrarias. Enquanto um livro classificado como “poesia”, como poderia ser o caso do próprio O bicho alfabeto, fica limitado a espaços pouco acessíveis para crianças.

Apesar de todos esses cuidados e recursos serem importantes quando se pensa em um livro feito para crianças,  há um elemento fundamental e anterior a todas essas escolhas: uma visão da criança como um leitor capaz, sensível, disposto e interessado.

 


 “É muito legal quando um projeto respeita a criança, aposta na sensibilidade, no potencial para a leitura de um texto. Muita gente acha que livro infantil é só contar uma historinha - e não é. Fazer um livro é um processo de muita potência” Fabíola Farias, professora e mestre 


Textos universais - e suas muitas trajetórias possíveis

Ilustração de 'Um azul para Marte', de José Saramago

Um azul para marte, de Saramago, imagina uma troca entre os marcianos e a Terra

 

Um azul para marte, o mais recente lançamento de Saramago adaptado para o público infantil, é uma crônica que faz parte do livro Deste mundo e do outro, publicado originalmente em 1971. “Os diversos textos de Saramago que selecionamos para estes livros [para o público infantis] são universais, graças à sua capacidade de perdurar e circular, através do tempo e do espaço. Foram publicados em diversas línguas e continuam a ser lidos e utilizados em inúmeras escolas e bibliotecas. Todos os prêmios e reconhecimentos que estes álbuns receberam na América, Europa e Ásia contribuíram significativamente para a sua circulação”, comenta Alejandro García Schnetzer, editor das obras de Saramago. 

Em entrevista à Blimunda, publicação da Fundação José Saramago, concedida em 2010, ano em que foram lançados O silêncio das águas e Uma luz inesperada, por ocasião do centenário do autor, Alejandro afirmou que "o que determina a possibilidade inicial de um projeto são as qualidades para atingir alguma emoção estética ou intelectual." Quando perguntamos o que então é necessário para alcançar essas emoções, a resposta sucede em poética.

 

“A emoção é como o sabor da maçã, só acontece quando se prova. E, para continuar com a metáfora, não existem maçãs para adultos ou para crianças.  A emoção compreende o humor, a franqueza, o medo, a beleza, o desassossego, a íntima admiração diante da inteligência ou da coragem. Nestes álbuns não há caminhos divergentes mas, sim, caminhos bem compartilhados por leitores de 6 a 99 anos.”, Alejandro García Schnetzer, editor das obras de Saramago

 

É por isso que ele considera como universais os textos eleitos para essas publicações voltadas às crianças e exalta o ofício realizado pelos ilustradores. “Não buscamos embelezar ou complementar os textos de Saramago, mas sim estabelecer um diálogo crítico e estético com suas ideias e representações. A integridade dos textos, portanto, é uma virtude fundamental. Do grande mestre J. Borges em O Lagarto, a Claudia Legnazzi em Azul para Marte, a Yolanda Mosquera em O silêncio das águas, Armando Fonseca em Uma luz inesperada e Amanda Mijangos em O primeiro barco, cada um, à sua maneira, estabeleceu um diálogo muito original com Saramago. Em suma, este é um projeto grandioso com raízes ibero-americanas, para leitores inteligentes de todas as idades”, afirma o editor. 


Quando autores que escrevem para adultos decidem se aventurar na literatura infantil

Muitas vezes, autores que escrevem para adultos resolvem também se dirigir às crianças, como fez Hilda Hilst em Eu sou a monstra. E também Martha Batalha em Liz sem medo (Escarlate 2024), ilustrado por Joana Penna. E ainda Stênio Gardel, com Bento, vento, tempo (Companhia das Letrinhas, 2024), ilustrado por Nelson Cruz. 

 

Ilustração de 'Bento, vento, tempo'

Bento, vento, tempo mostra a jornada de um menino que quer fazer o avô se lembrar...

Muitas vezes o chamado para fazer literatura infantil vem de casa, dos próprios filhos. Em outras, encontra raízes na própria infância. E em outras pode aparecer apenas pela curiosidade de testar novos formatos, novas linguagens, novas formas de narrar uma história. Esse foi o caso de Stênio Gardel com Bento, vento, tempo. Autor do premiado A palavra que resta (Companhia das Letrinhas, 2021), em que narra a árdua existência de Raimundo, ele conta que sempre sentiu admiração pelos autores de literatura infantil, especialmente os fazedores do livro ilustrado, “pela interação entre o texto verbal e o texto imagético e como isso constrói significados”. Antes de escrever Bento, vento, tempo, ele já tinha uma ideia, ainda muito solta, de fazer uma história sobre um neto que queria ajudar um avô a recuperar as memórias. E achou que fazia sentido escrevê-la para crianças e jovens.

O autor enxerga alguns paralelos entre A palavra que resta e Bento, vento, tempo. Um deles é que ambas as histórias falam sobre memória. “No Bento, vento, tempo o tema aparece de uma forma mais transparente até, mas em A palavra que resta a memória é abordada por meio da forma como a gente experimenta a vivência do Raimundo”, reflete o autor. O acolhimento é outro ponto que conecta as duas obras. “Em A palavra que resta, o Raimundo passa por um conflito muito forte, muito determinante com a família, onde ele não é acolhido dentro da própria casa. Mas depois ele consegue formar uma família de afetos, em que ele acolhe e é acolhido. Em Bento, vento, tempo, esse acolhimento pode ser visto na perspectiva do acolhimento aos mais velhos. O Bento busca ajudar o avô a recuperar as memórias, há ali uma intenção de trazer bem-estar para ele, de levar o avô para passear”, comenta. 

Para Stênio, o principal desafio de se dirigir intencionalmente a um público novo foi a linguagem - e a escolha por narrar Bento, vento, tempo em formato de cordel veio nesse sentido. “O cordel tem um texto metrificado, um texto com rimas, um ritmo diferente, um tipo de leitura diferenciada. As rimas também tornam interessante a leitura porque provocam uma curiosidade pelo jogo de palavras, pela seleção de palavras”, comenta o autor. O autor também pensou com cuidado na busca pelo léxico, nas construções sintáticas e na escolha de cada pedacinho da história que iria compor uma estrofe. “Foi uma sucessão de estreias para mim”, resume o autor. 

Martha Batalha, autora de A vida invisível de Eurídice Gusmão (Companhia das Letrinhas, 2016), entre outros, também contou que a linguagem foi o principal ajuste de Liz sem medo quando falou sobre o livro em entrevista ao Blog Letrinhas: “Quando eu comecei, notei que a história falava muito de um jeito adulto, não como uma criança falaria. Essa foi a maior mudança editorial em todo o processo. O livro passou por umas cinco edições da minha parte e depois mais umas três na editora.”

A linguagem é, para Fabíola, também a principal dificuldade na adaptação de obras literárias originalmente produzidas para adultos em livros para crianças e jovens. “Pode chegar um livro de Saramago para uma criança que tem um obstáculo para a compreensão desse tipo de linguagem, que ainda não tem um repertório suficiente. Por isso, é importante pensar em uma adaptação por meio de um produto editorial apropriado”, conclui. 

Para isso é preciso exercitar um olhar curioso para o texto. Não de um profundo conhecedor, mas de um descobridor. Um olhar de quem busca brechas e desbrava caminhos para abrir novas possibilidades. Um olhar de quem enxerga mais cruzamentos que barreiras. Um texto tem uma trajetória própria, segue um fluxo de arte. Pode ocupar diferentes espaços, assumir diferentes formas, transitar entre diferentes públicos. E, assim, trazer para mais perto crianças e adultos.

(Texto: Naíma Saleh)

 

Ana Lima Cecilio

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