
Repare bem na bagunça: o que ela diz sobre nós como sociedade?
Padrões de limpeza e ordem, divisão do trabalho doméstico, papéis de gênero - quem é responsável por arrumar a bagunça da sua casa?
Quem limpa a sua privada? Quem lava a louça na sua casa? Quem passa o aspirador?
Quando precisamos dar um rosto às mãos invisíveis que se responsabilizam pelo cuidado da casa, normalmente encontramos uma mulher, na maioria dos casos, uma mulher negra. Essas são algumas das provocações sobre nossa relação com o trabalho doméstico que o livro Quem limpa? (Companhia das Letrinhas, 2025) pode levantar. Escrito pela jornalista Bianca Santana com ilustrações de Ana Cardoso, a obra escancara a invisibilidade da labuta doméstica em contraste com a naturalização de que a carga recaia sobre uma só pessoa - a empregada, a mãe, a esposa.
A jornalista Bianca Santana e a editora da Companhia das Letrinhas, Debora Alves, com o livro Quem limpa? (Companhia das Letrinhas, 2025)
Bianca, que é colunista da Folha de S. Paulo, doutora em Ciência da Informação e mestre em Educação pela USP, tem uma relação bem íntima com o tema. Ela compartilhou com o Blog Letrinhas um pouco da história de sua família, os bastidores de Quem limpa? e falou sobre a necessidade de colocar o trabalho doméstico em pauta nos diálogos com as novas gerações.
Bianca Santana: A minha mãe foi empregada doméstica até entrar na universidade. E a mãe dela foi doméstica a vida inteira, o que é muito recorrente na história das mulheres negras no Brasil. Quando minha mãe tinha cinco anos, virou babá das crianças na casa em que a minha avó trabalhava.
Eu cresci na periferia de São Paulo, perto da (Rodovia) Fernão Dias. E escutava a minha avó e as vizinhas dela que também trabalhavam como domésticas contando histórias terríveis sobre as casas em que trabalhavam, sobre as tantas violências que os empregados sofrem e que não são vistas. E essa é uma questão importante: em um ambiente doméstico ninguém vê o que está acontecendo.
Desde muito cedo eu achava o trabalho doméstico ruim para quem contratava e ruim para quem fazia. Eu não entendia como esse tipo de acordo poderia ser de alguma forma melhor do que cada um limpar a sua própria sujeira.
Bianca Santana: Depois da abolição da escravatura, os negros conquistaram liberdade mas isso não veio acompanhado de práticas reparatórias, de políticas públicas para garantir o acesso à terra, ao trabalho e a educação, como sempre apontou Lélia Gonzales [ativista do movimento feminista negro brasileiro]. Então, quando olhamos para a história das comunidades negras, o dinheiro normalmente vinha do trabalho doméstico feito pelas mulheres. Isso diz muito sobre o nosso passado escravocrata e sobre como o racismo confina um tipo de pessoa a uma determinada classe.
O jeito como se resolve o trabalho doméstico no Brasil é contratando quem é mais pobre. Em países mais igualitários, as pessoas organizam a própria vida de outra forma e têm jornadas de trabalho que permitem o cuidado com a própria casa. Por aqui, ter alguém para limpar me parece algo tão naturalizado, que a gente não fala disso para crianças.
O trabalho doméstico é invisível para quem não faz enquanto sobrecarrega quem faz.
Bianca Santana: Eu escrevo para adultos sobre trabalho doméstico há bastante tempo e pensei em escrever sobre isso para crianças. Eu já havia publicado um livro infantil [Diálogos feministas e antirracistas (e nada fáceis) com crianças, Camaleão] por outra editora , mas em um outro formato. Lucia Riff e Eugenia Ribas, da Agência Riff, sugeriram que eu revisitasse alguns materiais que eu já havia elaborado para tentar extrair alguma ideia. Me lembrei de um texto publicado na revista Cult, chamado Quem lava a sua privada? E fiquei com vontade de transformar o argumento dele em um livro infantil.
Em um primeiro momento, tentei definir qual seria a pegada do livro: se construiria personagens, qual seria o tom… Queria um pouco provocar as crianças e então decidi ser irônica. Já enviei um projeto de livro mostrando o texto e a imagem bem casadinhos, em que a ironia se constrói nesse contraste.
Foi bacana também ter a Ana [Cardoso] como ilustradora, porque ela também é alguém que tem uma história com o tema - a avó dela também foi empregada doméstica.
Bianca Santana: Meus filhos falaram que ninguém iria se interessar por esse livro [risos]. Que ninguém ia ler. Eu respondo que a literatura não é só o que a gente gosta, o que a gente quer, o que a gente sabe que vai gostar. Acho que a abordagem do livro desafia a criança. Como palavra e imagem entram em conflito, é possível provocá-las a pensar não só sobre o tema, mas também sobre a linguagem, sobre essa construção de sentido necessária para entender a ironia.
É um livro para conversar com as crianças, para desafiá-las a pensar de quem é responsabilidade e quais são as mãos invisíveis que limpam a bagunça de todo mundo. Acho que pode, sim, trazer um certo desconforto refletir sobre isso para as classes mais ricas. E para as meninas que já fazem essas tarefas domésticas dentro de casa, o livro também pode ser uma ferramenta, já que em muitas famílias, quando não é mãe que faz, porque trabalha, porque passa o dia longe, normalmente são as meninas que assumem a responsabilidade de cuidar da casa.
Para os pais e cuidadores, é um convite a pensar que, de acordo com a idade, as crianças já conseguem fazer muitas coisas. Isso é importante para desenvolver autonomia, mas também para construir uma nova divisão do trabalho. Para isso, é preciso educar as pessoas.
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Bianca Santana: Quando eu fui morar sozinha, em uma kitnet, eu fazia tudo. Aí fui morar com o meu ex-marido, que era uma pessoa para qual era automático contar com alguém para dar conta da casa, o que já foi motivo de muitas tensões no relacionamento... Quando meus filhos eram pequenos e eu estava fazendo mestrado, chegou um ponto em que eu realmente precisei de ajuda. Foi quando a Luzia Nascimento veio para a nossa casa - nós tínhamos quase a mesma idade e fizemos um pacto: ela iria estudar para não ser mais doméstica e eu iria contar com o trabalho valioso dela por um tempo. Foram seis anos em que tivemos a Luzia conosco E já faz nove que não temos ninguém; quando decidimos dividir entre nós as tarefas meus filhos estavam com 4, 6 e 8 anos.
Bianca Santana: É como no livro: cada um faz a sua parte. Cada um é responsável por limpar o próprio quarto. Cozinha e banheiro precisam estar sempre em ordem. Sujou, limpou. Não dá para ficar acumulando louça, tem que passar pano na bancada... essa parte é um trabalho permanente. Tenho um aspirador robô e não passo roupa - se uma camisa ou um vestido precisam ser passados, é porque eles não podem ser meus [risos]! Assim como uma roupa que não pode ir para a máquina de lavar também não pode ser minha.
Eu cheguei a morar em uma casa maior, mas depois me mudei para um apartamento, um movimento contrário ao que as pessoas normalmente fazem para poder dar conta. Isso implica em ter menos coisas, mas eu tenho prazer em estar em uma área menor, para não precisar de ajuda.
Bianca Santana: Me parece um exercício importante de reconhecer que há percepções diferentes. A minha avó foi empregada doméstica na mesma casa onde a minha mãe cresceu e depois onde ela também trabalhou. É a casa onde a minha mãe aprendeu a ler, onde ela foi incentivada a não largar a escola, onde sempre foi “cuidada”. Eu vou lançar um livro chamado Apolinária, que é o nome da minha avó. Nele há duas vozes que narram: uma que nasceu no começo do século 20, começou a trabalhar nos anos 40, e é uma voz pouco crítica, de quem é muito grata por ganhar a roupa dos patrões, a sobra de comida do jantar… É diferente da outra voz, mais jovem, que narra uma outra relação com o trabalho e o mundo.
Falar de trabalho doméstico antes para a minha mãe era muito ofensivo. Mas hoje ela entende que o que eu trago é uma visão diferente.
(Texto: Naíma Saleh)
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