Repare bem na bagunça: o que ela diz sobre nós como sociedade?

23/06/2025

 

“Não repara na bagunça!”

Quem nunca recebeu visita em casa e se viu dizendo essas palavras - mesmo que a casa estivesse, sim, em ordem?

Mas e se a gente fizesse o contrário e decidisse reparar bem na bagunça? O que é que ela poderia nos mostrar sobre nossos padrões de limpeza e organização, sobre a divisão do trabalho doméstico, sobre papéis de gênero?

Para manter uma casa funcional e minimamente em ordem, não tem mágica: alguém tem que limpar e organizar. Sim, cuidar da casa é trabalho - um trabalho que não raro desemboca em exploração. E quem se dedica a isso nos lares brasileiros ainda são as mulheres - a maioria delas, negras. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2022 mostram que mulheres gastam em média 9,6 horas a mais em trabalhos domésticos do que os homens - mas se for uma mulher negra, são 13,1 horas a mais que eles, seja em trabalhos remunerados ou não. No livro Quem limpa? (Companhia das Letrinhas, 2025), lançado pela jornalista Bianca Santana com ilustrações de Ana Cardoso, fica evidente o que acontece quando a responsabilidade pela bagunça e pela limpeza da casa não recai sobre todos os moradores. A obra foi lançada na nova leva da Coleção Canoa, que apresenta literatura de qualidade a preços acessíveis. Em um diálogo bem construído entre texto e imagem, evidencia-se o contraste entre as responsabilidades de cada um.  Enquanto alguém organiza - a mãe, a esposa, a empregada doméstica… - muitas vezes os demais moradores sequer percebem o caos no entorno… 

 

Ilustração de

Já viu alguma casa assim em que tudo fica sujo? Qual será a mágica para limpar? Ilustração de Quem limpa? (Companhia das Letrinhas, 2025)

A bagunça (ou pelo menos o que entendemos como sendo bagunça) de fato incomoda mais as mulheres. Em 2023, um estudo da Universidade da Califórnia mostrou que mulheres que descreviam suas casas como bagunçadas apresentavam maiores níveis de cortisol, o hormônio responsável pelo estresse, além de maior propensão à depressão. Não é surpresa que seguiu-se à divulgação desse estudo uma enxurrada de pesquisas sobre a importância de manter a casa organizada para contribuir com a saúde mental e muitas matérias com dicas e dicas para a organização do lar.

Mas outro estudo mais recente, de 2023, realizado pela Universidade de Sydney, revelou uma perspectiva ainda mais interessante. Ao analisar 60 casais, observou-se que mulheres que viviam em lares desorganizados apresentavam níveis mais altos de cortisol e sintomas de depressão mais intensos.

Esses efeitos permaneciam mesmo quando fatores como satisfação conjugal e traços de personalidade eram levados em consideração. Em compensação, os homens pareciam ser pouco afetados pelo estado de seus ambientes domésticos. Uma hipótese para explicar esse resultado é que o contato com a bagunça dispara na mulher um ímpeto de organizar tudo o que precisa ser feito, porque ela se sente (e normalmente é) a responsável pela organização do lar. E essa é uma construção social. 

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A bagunça e a nossa relação com os objetos

“A mulher é colocada no papel de organizar a casa como uma metáfora para organizar a família - é daí que começam a surgir ideias como a ‘fada madrinha’, a ‘rainha do lar”, explica Carolina Ferraz, dona do perfil @ondeeudeixei, que dá dicas para manter uma casa organizada de verdade e ajuda a desmistificar o que se entende por ordem. Ela pesquisa bagunça na USP, entre a antropologia, a história social, a psicologia social e a cultura material. Para ela, uma casa organizada “é aquela que a gente sabe minimamente onde estão as nossas coisas - passaporte, vacina de criança, sapato… Se isso está esteticamente bonito, não me importa”. Essa definição parte do princípio que o grande problema da bagunça é a angústia que ela gera quando a gente não sabe onde está um objeto.

Carolina fala com a propriedade de uma ex-bagunceira convicta. “Me lembro de uma chefe que uma vez me disse: ‘“Carol, eu sei que vc é super competente, mas eu preciso que você organize a sua mesa de trabalho” Era cheia de papéis e coisas…” Carolina esbarrou na bagunça quando estudava teoria material, uma abordagem da semiótica que se concentra nos aspectos materiais dos signos, analisando a relação que estabelecemos com os objetos. Na época, ela estava cursando uma pós que unia psicanálise e semiótica na PUC-SP, na qual se dedicou a analisar processos de luto e apego. “Nesse ponto, eu já tinha tentado me organizar de todas as formas possíveis. Um dia perdi um chaveiro pelo qual eu tinha muito carinho e fiquei morrendo de ódio. Foi quando uma amiga me sugeriu o livro da Marie Kondo”. A escritora japonesa propõe um método próprio, o KonMari, que promete simplificar a organização da casa partindo de um critério simples: manter só aquilo que te traz alegria. Carolina viajou para os EUA para fazer o curso de formação da Mari Kondo, depois foi assistente do programa Santa Ajuda, um reality show de organização exibido no GNT entre 2011 e 2020, e mergulhou na investigação de outros muitos métodos para tentar entender por que todos falham em manter a casa organizada no longo prazo. Aos poucos, seu projeto de pesquisa foi crescendo, na tentativa de entender como é o discurso de organização e bagunça nos programas de organização do Brasil. Mas antes disso, ela precisou se dedicar a formular o conceito de organização na sociedade e  entender por que nossas casas são organizadas hoje de uma certa maneira - e por que a sobrecarga do cuidado com o lar é da mulher.

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A casa como a conhecemos hoje e a mulher como “rainha do lar”

No século 19, o cenário do Brasil era bastante específico entre as classes altas, nas fazendas e engenhos - que eram administrados por mulheres. As casas eram térreas, sem muitos móveis, sem divisão de cômodos, sem cortinas nem armários - em vez deles, as pessoas guardavam tudo em baús -, cozinha do lado de fora. A escassez de objetos se devia à ausência da linha férrea e essas casas não tinham áreas sociais porque todos os festejos eram realizados do lado de fora - na praça, na igreja. Casa era lugar de se recolher.

Enquanto isso, na Inglaterra, a Rainha Vitória começa a organizar bailes em casa, como um mecanismo de reforçar seu status e demonstrar poder - exatamente como vemos em filmes como  Orgulho e Preconceito ou na série Bridgerton. Com o advento da revolução industrial, um século antes, as casas já haviam começado a ser departamentalizadas. Houve uma melhora considerável na infraestrutura das casas de classes privilegiadas e uma oferta bem maior de objetos, o que também alimentou a necessidade de novos funcionários. “A casa que antes era feita para ser um local de descanso começa a se tornar um local para ver e ser visto”, resume Carolina. 

Voltando para o Brasil, em 1889, com a Proclamação da República e o fim do Segundo Reinado, nosso país se aproxima da Inglaterra e da França, em uma tentativa de copiar o modo de vida desses países. “ A ideia é criar cidadãos ordeiros, como forma de organizar a sociedade, o que na prática significa hierarquizar, estabelecer classes e limites. Nesse momento, as casas começam a se dividir em cômodos, chega o gás, chega a energia elétrica, a cozinha é trazida para dentro”, conta Carolina. Tudo faz parte de um grande movimento higienista que também se reflete nas paisagens urbanas. Os pobres são varridos para o alto dos morros e o quarto da empregada passa a ficar escondido dentro da casa.

Nesse novo modelo de cidade que se afasta de um conceito rural e se aproxima do moderno, é preciso formar novos cidadãos. “Tudo que é ordeiro significa progresso. A ordem se instaura estabelecendo o papel do homem na esfera pública e o papel da da mulher dentro do lar”, explica a pesquisadora. Quando tudo isso acontece, as casas ganham cristaleiras onde objetos começam a ser expostos, as janelas se vestem com cortinas, o chão é forrado com tapete. É claro que as camadas mais pobres não conseguem replicar luxo algum, então o caminho para que eles fortaleçam a ordem é a limpeza - e isso explica porque os padrões de faxina no Brasil são bem mais rígidos do que de outros países onde a sujeira parece não incomodar tanto assim.

Para ajudar as donas de casa a manejarem esses novos lares, surgem os Manuais domésticos, publicações feitas para mulheres reforçando os ideias de domesticidade e boas condutas. Eles explicam como organizar a casa, estabelecendo o que guardar, onde e como, trazem sugestões de receitas, condutas para lidar com empregados. “Você precisava ser ordeiro e fiscalizar. Se a dona de casa branca não tiver uma casa impecável, essa mulher perde o valor, então ela vai dar tudo para manter essa casa em ordem”, explica Carolina. 

Mais tarde, nos anos 1950, a imagem da mulher passa a ser ainda mais associada ao lar, como sua fonte de poder, seu território. Não basta manter tudo limpo e organizado: é preciso dar conta da casa sem esforço, como em um passe de mágica, para que o homem sinta o conforto quando chegar ao lar do trabalho - no lugar de encontrar uma esposa exasperada por ter passado o dia esfregando o chão e as vidraças. Esse imaginário da mulher capaz de resolver tudo muito rápido é alimentado por personagens como Jeannie é um gênio e A feiticeira, séries dos Estados Unidos de grande sucessos na década de 1960.  Imagine só ter poder organizar uma casa inteira apenas com uma piscadinha ou uma torcidinha no nariz… 

Em um Brasil que permanece com o pensamento escravocrata mesmo após a Abolição, em 1988 - em que a lógica da branquitude constroi o país racista que ainda temos hoje - , até os eletrodomésticos demoraram mais a chegar, pela resistência a deixar que empregados manuseassem os equipamentos. “Os próprios Manuais domésticos alimentavam a ideia de que as domésticas seriam de classes ‘ruins’ e precisariam ser ‘domadas’. A sociedade vigia as mulheres brancas; as mulheres brancas se vigiam e vigiam as mulheres negras; as mulheres negras se vigiam entre si”, ressalta Carolina. Essa vigilância segue uma lógica de crueldade, na esteira do conceito de “sociedade de vigilância” do francês Michel Foucault, e permanece forte até hoje, alimentando a ilusão de que a mulher tem poder quando exerce esse controle sobre o próprio lar - e sobre as pessoas contratadas para manter a ordem e a limpeza. 

 

Ilustração de 'Quem limpa?'

Se quem suja não limpa, a quem cabe limpar? Ilustração de Quem limpa? (Companhia das Letrinhas, 2025)


Como romper a lógica de um lar imaculado - e inalcançável


Mas como as mulheres podem se dissociar desse papel de “rainhas do lar”, se colocando como responsáveis pela bagunça alheia ou vigilando outras mulheres que assumem o trabalho de organizar e limpar a casa? Para Carolina, o primeiro passo é entender que bagunça prejudicial é aquela que atrapalha o dia a dia - e, assim, baixar um pouco nossa régua de organização. “Não é a bagunça que faz mal, é como você se sente em relação a ela. A bagunça de 98% das pessoas é consequente de ter muitas coisas e faltar espaço para guardá-las”, pontua. A partir dessa lógica, listamos abaixo alguns pensamentos e ações que podem ajudar não apenas a manter a organização de forma mais leve, mas a aliviar a carga mental do cuidado com a casa e repensar uma divisão mais justa das responsabilidades. O mais importante é: deixe a culpa de lado. “O primeiro conselho que eu dou para todas as mulheres é sempre esse: abaixe essa voz na sua cabeça que te obriga a dar conta de tudo e lembre que fomos socializadas para isso. A mulher precisa parar de se responsabilizar pela casa que não é só dela”, reforça Carolina.

 

Desapegue de padrões inalcançáveis: uma casa bagunçada é diferente de uma casa simplesmente habitada, que em nada se parece com as fotos que vemos em revistas de arquitetura e decoração em que cada coisa está impecável em seu devido lugar. 


Pense no que é possível dar conta sem ajuda contratada: quanto menos coisas para administrar, mais simples o cuidado se torna. Lembre-se que casas de revista, com paredes de vidro, cortinas, tapetes, muitos objetos para tirar pó, tudo isso já pressupõe um batalhão de empregados para a manutenção.


Envolva todo mundo: a responsabilidade pelo cuidado da casa é de todos e é preciso ser repartida sem distinção de gênero. Isso é importante para aliviar a sobrecarga das mulheres desta e das próximas gerações.


Crie uma casa que te ajude em vez de te atrapalhar: se você não gosta de dobrar roupa, crie um espaço em que elas possam ficar penduradas. Se você não gosta de passar roupas, só compre peças que não precisam ser passadas. Facilite a sua vida.


Desapegue da estética: sim, aquela prateleira toda aberta parece belíssima no Instagram. Mas já pensou ter que manter cada prateleira arrumada - e ainda tirar o pó de tudo?


Se precisar mesmo de ajuda com a casa - garanta uma remuneração decente e de acordo com as novas leis: sim, é preciso abrir mão de privilégios fugindo de justificativas como "esse é o único emprego que ela tem”. Pague bem, respeite folgas e horários de descanso e ofereça perspectivas para que a pessoa que trabalhar na sua casa possa ganhar autonomia e se dedicar a outras atividades. Não adianta tratar “como se fosse da família”. 


Crianças também podem ajudar - e nem sempre seguem a mesma lógica de arrumação: Além de delegar pequenas tarefas de acordo com a idade - como ajudar a recolher os brinquedos, dobrar roupa, lavar louça - será que a forma como você organiza o quarto do seu filho funciona para que ele sozinho mantenha tudo arrumado? Na lógica da criança talvez os bichos de pelúcia fiquem melhores dentro da caixa de blocos montáveis.

 

(Texto: Naíma Saleh)

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