A escrita inquietante de Shirley Jackson, por Fabiane Secches

25/08/2025

Uma fotografia em preto e branco de uma mulher com expressão serena. Ela usa óculos arredondados, tem cabelos na altura dos ombros, levemente ondulados, e veste um casaco ou blazer. O fundo é liso e escuro, destacando sua figura.

A escritora Shirley Jackson, considerada a rainha do terror psicológico, construiu sua obra como quem investiga os labirintos mais sombrios do psiquismo. Em seus escritos, podemos encontrar elementos alinhados aos princípios fundamentais da psicanálise trabalhados de forma literária.

No centro desse universo parece estar a ideia freudiana de inconsciente: o depósito oculto de memórias, traumas e desejos que, expulsos da consciência, retornam na forma de sintomas — sejam eles fobias, atos falhos ou estranhos rituais sociais. As personagens de Jackson, muitas vezes, não entendem de onde vêm sua angústia, mas quem lê com atenção reconhece os sinais de um conflito subterrâneo: a mente implodindo sob o peso do não dito. Como o edifício do museu no romance O ninho do pássaro que está tombando para um dos lados, o passado ocupa o espaço de forma que a construção já não dá conta de contê-lo sem apresentar sinais de desgaste. Parece uma bela imagem para ilustrar o que é o trabalho psíquico da repressão e do retorno daquilo que foi reprimido. 

Tais personagens habitam mundos domésticos, vilas ou comunidades que exigem ordem, polidez e obediência. Mas, por trás das fachadas, vemos acirrada a tensão do pacto civilizatório. Ou também, nos termos de Freud, um embate entre o id (ou isso) e o superego (ou supereu). Os textos de Jackson, nas lindas traduções de Débora Landsberg que preservam a ambiguidade da obra, são tingidos ora de terror, ora de ironia, e a sobreposição entre o que é conhecido e o que está oculto é uma das responsáveis pelo efeito inquietante da leitura.

Pintura mostrando seis figuras femininas dispostas ao redor e sobre uma escada externa de madeira. As mulheres vestem roupas escuras e aparecem em diferentes posturas: sentadas, em pé e apoiadas no corrimão, com expressões serenas ou introspectivas. O fundo é simples, com céu claro e tonalidades suaves que contrastam com a estrutura escura da casa.Ilustração do Will Barnet

Em suas narrativas, podemos dizer que a atmosfera é de fato dominada pelo conceito do Das Unheimliche freudiano: uma experiência que oscila entre o que é familiar e o que é estranho, e resulta num efeito de inquietação. Uma casa, um vizinho, um gesto cotidiano — tudo pode se converter em focos de horror quando algo que foi recalcado consegue vir à tona. Impressiona a sofisticação com que Jackson reconstrói a sensação de perceber a presença de algo obscuro que sempre esteve lá.

Nas relações íntimas, em especial nas familiares, Jackson também encena a ambivalência afetiva: o amor mesclado ao ódio, a lealdade corroída por ressentimentos. Assim, o lar, cenário aparentemente seguro, torna-se território de forças em disputa. 

Outro eixo recorrente no trabalho da autora é o da culpa. Suas personagens parecem guiadas por uma força de autodestruição, da ordem da pulsão de morte, como se buscassem punição para pecados desconhecidos. A expiação, assim, é uma forma de alívio e, por isso, uma fonte tanto de sofrimento quanto de prazer.

Mas é importante ressaltar que Jackson não usa a psicanálise como explicação, sua matéria-prima é a literatura. Ela não descreve diagnósticos; ela constrói representações estéticas de experiências psíquicas complexas. Embora seja uma grande exploradora do mundo interno de suas personagens e das relações que estabelecem com o mundo externo, mais do que uma exímia observadora da psiquê humana, é sobretudo pela sua escrita, pela forma com a qual Jackson manuseia esses temas, que sua obra produz esse impressionante efeito de assombro em quem a lê. 

Fabiane Secches é psicanalista, escritora e pesquisadora. Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, atualmente é doutoranda nessa mesma instituição.

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