
Quem é Shirley Jackson, autora que revolucionou o terror psicológico
Nos 60 anos da morte da escritora, celebramos o impacto de sua literatura, que revolucionou o gênero do terror psicológico.
Morta há sessenta anos, autora estadunidense estabeleceu parâmetros do horror psicológico e influencia nomes como Stephen King e Mariana Enriquez
Uma jovem tímida e reservada, de vida simples, começa a demonstrar um comportamento estranho. Sente fortes dores de cabeça, sofre de episódios de amnésia e, durante as noites, de sonambulismo. Ao se consultar com um médico, ele a encaminha para um psicólogo, que passa a tratá-la por meio de hipnose. Durante uma das sessões, enquanto a moça está em transe, suas expressões mudam por completo, ficam retorcidas e ela dá um sorriso demoníaco. Assustado, o psicólogo percebe algo espantoso: há algo “dentro” da jovem, uma entidade que toma conta dela à noite e nos períodos de amnésia, de personalidade totalmente diferente.
Esta é a premissa de O ninho do pássaro, romance publicado pela estadunidense Shirley Jackson em 1954. Ou seja, dezessete anos antes de William Peter Blatty publicar O exorcista, em 1971, Jackson já trabalhava a ideia de possessão — não exatamente demoníaca, mas tão assombrosa quanto — de uma jovem. Aqui, estamos no sinuoso terreno dos transtornos de múltiplas personalidades. A moça em questão é Elizabeth Richmond, que, como veremos, abriga duas outras versões de si, Beth e Betsy — esta é sua inimiga e vive a sabotá-la de todas as formas. Não se trata de duplos, mas de triplos.
O ninho do pássaro é o terceiro romance de Jackson, que nasceu em 1916 e morreu em 1965, e é um de seus trabalhos menos conhecidos no Brasil. Nele, estão vários dos traços que a transformaram em referência para o que hoje se compreende como horror psicológico — isto é, quando a perturbação e o arrepio vêm de dentro, da dimensão mental de personagens, e não de fora. No plano do enredo, vítima e antagonista coabitam um mesmo corpo; e a autora sabe como angariar a empatia por suas protagonistas, quase sempre mulheres sensíveis sob forte pressão, também por isso reprimidas. A inimiga está do lado de dentro e matá-la é matar a si mesma; por si só, um plot aterrorizante.
Quanto à forma, Jackson continua insuperável. Sua estilística flutua entre a frivolidade e o inquietante e basta uma simples vírgula para que tudo mude para pior. Só ela consegue encaixar um camafeu e um fantasma no mesmo parágrafo, às vezes na mesma frase. No caso de O ninho do pássaro, as transições ocorrem quando Betsy volta a dar lugar a Elizabeth, e esta percebe as situações ora embaraçosas, ora repulsivas em que foi colocada pela “outra”. Shirley Jackson sabe como distrair, como chamar atenção para um detalhe aparentemente irrelevante, enquanto arma um bote vigoroso uma ou duas linhas abaixo — graças à sua prosa cintilante. Outro mestre nesse procedimento é alguém que vê, na autora, uma “mestra do horror moderno”: ninguém menos do que Stephen King, que chegou a criar sua própria versão de A loteria, o mais famoso (e perturbador) conto de Jackson.
A obra que fixou essas características e consagrou a escritora como precursora do horror psicológico veio cinco anos depois de O ninho do pássaro: o romance A assombração da Casa da Colina, de 1959. Foi graças a ele que, de acordo com a biógrafa Ruth Franklin, Jackson passou a ser chamada de “Virginia Werewoolf” (algo como “Virginia Lobisomem”) em sua época. O apelido se justifica. Nesta história de quatro personagens que se reúnem em uma mansão para investigar fenômenos sobrenaturais, a narração em terceira pessoa mergulha com frequência na mente de Eleanor, a protagonista. A imersão psicológica é ora delicada, ora brutal. As transições são vertiginosas e por vezes lembram aquelas de Woolf, referência do modernismo e reconhecida como pioneira na exploração da psique de suas personagens. Com Shirley Jackson, e neste romance mais do que em qualquer outro, tal exploração expande os efeitos do horror, pois acentua a ambiguidade do relato. Recursos retóricos recorrentes, os confrontos “realidade X delírio” e “realidade X sonho” são eximiamente manuseados pela autora.
Um exemplo está no trecho mais assustador de A assombração…: o capítulo em que Eleanor desperta no meio da noite por conta de barulhos. Ao longo da passagem, ela aperta a mão de Theodora, a amiga que dormia na cama ao lado e que também despertara com os ruídos. Ambas escutam “o som baixinho, constante, [que] não parava nunca, a voz às vezes se levantando para enfatizar uma palavra murmurada, de vez em quando se reduzindo a uma respiração, sem nunca parar”. Neste momento, há uma verdadeira escalada de tensão. Uma após a outra, Jackson vai empilhando sutilezas sonoras e táteis no breu, de modo que nos vemos a sós com as especulações e o pavor de Eleanor. O trecho remete a O poço e o pêndulo, um dos contos mais conhecidos de Edgar Allan Poe, em que uma vítima da inquisição adivinha, no escuro e aos poucos, as torturas a que é submetida.
Eleanor e sua amiga também são vítimas, mas não se sabe exatamente do quê. Há uma subtrama, uma explicação para o possível assombro da casa, mas nada é claro ou explícito. E, de incerteza em incerteza, sem jamais sabermos o que de fato ocorre, chegamos ao final do capítulo com uma reviravolta nada menos do que arrepiante.
E os trunfos de Shirley Jackson não se restringem à investigação psicológica de suas personagens; os espaços também se destacam em suas obras. Em um ensaio intitulado Os fantasmas de Loiret, a autora, que era filha e neta de arquitetos, afirmou adorar casas — “particularmente casas velhas, grandes e luxuosas”. As construções lúgubres e apartadas também a atraíam. Particularmente aquela cuja foto o marido lhe mostrou, “uma casa feia, cheia de ângulos todos errados”, conforme relatado no mesmo ensaio.
Talvez tenha sido essa a inspiração para a Casa da Colina, que controla aqueles em seu interior como uma titereira enlouquecida. É, de fato, “uma casa desprovida de sanidade”, de desenho confuso, disposição labiríntica e medidas “levemente erradas” (H.P. Lovecraft brindaria a essa formulação), degraus sutilmente desnivelados, vãos de porta “um bocadinho fora de eixo”, entre outros sutis desatinos.
No melhor estilo da narrativa gótica, portas se fecham sozinhas, sons inexplicáveis se fazem ouvir, temperaturas despencam em locais específicos da casa e, claro, fantasmas pairam por toda ela. Sobretudo o espectro de Hugh Crain, o responsável pela construção e, aparentemente, pela tragédia que a marcou. A propósito, o trecho em que conhecemos o livro que ele criou e relegou para a filha mais velha, contendo uma interpretação muito particular de religião, é mais uma aula magna da sugestão que conduz ao horror.
Outro ponto alto tanto de A assombração… quanto de O ninho do pássaro é a verossimilhança. As histórias estão cheias dos “efeitos do real” de que falou o crítico e filósofo francês Roland Barthes, que fortalecem o pacto ficcional com o leitor e a leitora. Jackson consegue nos convencer da verdade de suas personagens, envolvendo-nos em suas motivações, para então cercá-las — e a nós — com os efeitos do irreal, ou do sobrenatural.
É possível listar muitas outras qualidades desses e de outros romances da autora, como O homem da forca e Sempre vivemos no castelo. Poderíamos tratar das elipses que estimulam a nossa co-autoria, de personagens menores, mas inquietantes (como a Sra. Dudley de A assombração…), ou mesmo do humor sutil que marca essas obras. Mas o melhor a fazer é recomendar que você vá direto à fonte. E que descubra, nesta autora que nos deixou há exatos sessenta anos, uma fonte inesgotável de arrepios — e, por que não?, de prazeres.
Oscar Nestarez é escritor, tradutor e pesquisador da literatura de horror. Entre outros livros, publicou Bile negra e Claroscuro, e organizou, ao lado de Júlio França, a antologia Tênebra - narrativas brasileiras de horror [1839-1899]. Também é colunista da revista Galileu.
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