Através do espelho, por Bruna Dantas Lobato

08/07/2025

Na época da faculdade, eu falava com a minha mãe quase todas as noites pelo Skype, traduzindo para ela tudo o que eu via e aprendia — eu em Vermont, vivendo nos Estados Unidos como aluna bolsista, e ela em Natal, no Rio Grande do Norte. Descrevi a neve, as salas de aula, meu dormitório no meio do campus, os livros que lia. Cheguei até a traduzir receitas das minhas comidas favoritas (lemon poppy seed muffins, pumpkin pancakes, pecan pie, todas com ingredientes inacessíveis) para quem sabe ela experimentar um dia. Mas não importava o quanto eu tentava explicar como era viver sozinha neste país, quantas horas passadas em chamadas de vídeo, quantas fotos eu tirava, nada era o suficiente. Meu português falhava, minhas fotos saíam borradas, nenhuma descrição chegava perto da estranheza e complexidade da experiência de verdade.

Depois de anos, minha melhor tentativa se materializou na forma de um romance, a história de uma mãe e filha vivendo e crescendo juntas na frente da tela. Elas enfrentam solidão, dificuldades financeiras, problemas de saúde, distâncias e ausências, surpresas e descobertas. Tudo que escrevi é ficção, no sentido que as nossas vidas tomaram rumos diferentes das vidas das minhas personagens, que tivemos outros tipos de sorte e azar ao longo do caminho, mas é também tudo muito verdade.

 

 

Nas primeiras páginas, tem uma dedicatória em português: “Para minha mãe e minha irmã. E para nós estrangeiros”. Mas o resto do livro foi originalmente todo escrito em inglês, um idioma que aos poucos se tornou minha ferramenta principal e que minha mãe não sabe ler. Seria, então, mais uma tentativa fracassada, mais uma carta não entregue, mais uma verdade não dita.

Até que no começo de 2024, de férias da faculdade onde ensino e com o livro já com data de publicação em inglês, finalmente me sentei na frente do computador e comecei a traduzir. Meu português estava enferrujado no comecinho, fora de uso por tanto tempo, um pouco estranho na minha voz. Tive medo de acabar confirmando que tinha perdido de vez a minha vida no Brasil. Mas em poucos parágrafos, comecei a sentir minha língua materna voltando para mim. Meus personagens falavam como filha e mãe, as frases bonitas ainda eram bonitas, eu ainda era eu. E eu estava indo para casa, de certa forma.

Quando terminei o primeiro capítulo, liguei para minha mãe no Whatsapp e confessei. “Tenho uma surpresa para você”, eu disse, e li meu trabalho para ela pela primeira vez em um idioma que ela entendia. E ela entendeu.

Tirei uma print do momento para guardar de lembrança, mãe e filha conversando por vídeo sobre mãe e filha conversando por vídeo em um romance traduzido. Eu não sabia na época, mas esse era o meu sonho desde que comecei a estudar literatura e escrever: livros gêmeos, em duas línguas ao mesmo tempo, a minha mãe comigo lá fora enquanto também estou com ela do lado de dentro. Através do espelho da tradução, muito mais do que no espelho da tela do meu computador, os meus dois lados se encontram.

 

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