A verdade em 'Mal do senhor', por Vinícius Neves Mariano

15/05/2025

Obra de Santídeo Pereira usada na capa de A pele em flor

 

História que abre o livro A pele em flor, “Mal do senhor” é o relato da busca do que existe de real por trás da expressão que dá título ao conto. Depois de testemunhar uma cliente, branca, humilhando uma atendente, negra, no café de uma livraria, o personagem ouve de um amigo que esse tipo de resposta agressiva e desproporcional à ação de uma pessoa negra poderia ser sintoma de um distúrbio. Tal condição afetaria indivíduos brancos incapazes de lidar com pessoas negras em exercício pleno de liberdade. A partir desse pressuposto, e reconhecendo na própria experiência as ocasiões em que foi vítima de ataques improcedentes de pessoas brancas, o protagonista embarca nessa investigação. 

A busca segue por rumos inesperados. Para contá-los, lanço mão de uma linguagem que, pouco a pouco, borra os limites entre realidade e ficção. Ou realidade e especulação. O uso de elementos reconhecíveis no texto, como obras literárias, nomes de autores e lugares existentes, ajuda a forçar, o tempo todo, a linha entre os dois universos. Em determinado ponto, de tanto ser cruzada pelo protagonista, essa fronteira se torna imperceptível.  

A história tem tido uma recepção entusiasmada. Ao contrário do que acreditava o protagonista, o lastro do mal do senhor não mora em obras clássicas da psiquiatria brasileira tampouco nas crônicas jocosas do início do século passado; mas sim na experiência de vida de leitores e leitoras. 

Entre os comentários que venho escutando, uma pergunta em particular tem aparecido com frequência, o que me deixa bastante intrigado: “o que tem de verdade no ‘Mal do senhor’?”. Diante dela, de modo geral, gaguejo qualquer coisa vaga, inexpressiva mas sorridente, e tomo um caminho tangencial. 

A verdade é que não sei como responder essa pergunta. Não sei se a compreendo integralmente. Que espécie de leitor-garimpeiro é essa que peneira uma história, como se acreditasse encontrar, em seu devaneio bandeirante, a valiosa verdade incrustada na sujeira descartável da ficção? E ainda que tal extração fosse viável, o que se faz com a pepita de verdade que resta na malha de aço fino da peneira? 

Imagino a cena. Está escuro. Somente um fio sonoro, metálico, daqueles que pequenos motores emitem, parece sobreviver ao breu. De repente, a luz é acesa. Do centro do teto, ela se derrama absoluta; é uma garagem. Ou um porão. Sob a lâmpada fria, há uma maca de metal coberta com lona transparente. Ouve-se então um rangido de porta. Alguém entra. Com o que veste, pouco dá para saber sobre a figura: no dorso, um avental ocre e largo; nas mãos, luvas hospitalares azuis; máscara cirúrgica e faceshield cobrem a cabeça. Apoia sobre a maca um estojo metálico e um rolo de pano. Abre o estojo e confere o conjunto de bisturis e alicates; em seguida, desenrola o pano e acaricia as facas de diferentes tamanhos. Como se não estivesse prestes a cometer uma atrocidade, caminha até um freezer horizontal, provavelmente a origem daquele fio sonoro irritante, e tira de lá o corpo inerte de sua vítima: um livro. A obra é depositada no centro da maca. Não há brilho algum na capa. A lombada está rígida, gelada. A figura não demonstra espanto. Sua mão busca um bisturi. Por trás da máscara, deve estar sorrindo. 

Me pergunto qual a finalidade de desmembrar o corpo da ficção. Encontrar a verdade em suas entranhas não é uma resposta que basta; seria como dizer que a ficção, em sua integralidade, não serve para dizer a verdade. O que seria dos mitos, que deram respostas ficcionais a tantas questões humanas, a tantas verdades naturais, solidificando em torno delas as primeiras sociedades, se tivessem passado por uma checagem como essa? O que seria da imaginação, do inventar, do brincar, se, em determinado momento da história humanidade, passassem a ser inspecionados? 

Talvez seja um sinal do agora. Talvez a enxurrada de notícias falsas que tomam conta do cotidiano tenha mais uma consequência devastadora: ao combatê-las — combate tão urgente e necessário — acabamos combatendo também a imaginação. Ou ainda: talvez o cenário atual, em que sofremos com a crise climática, em que testemunhamos a guinada à extrema direita, em que as divergências são tratadas com intolerância e agressividade, talvez tudo isso dê a sensação de que não é hora para ficção. Me diz logo o que eu preciso saber, sem baboseira!

Se é isso que o tempo demanda, a desidratação factual nos sufocará. O que há de verdade na Odisseia além da busca universal de uma pessoa por sua essência? Nada. Portanto, sem valor. Que se auditem os velhos xamãs! Que vistoriem as falas dos griots! Extraiam deles algum fato! 

A ruína de qualquer sociedade, seja ela um império ou uma amizade, um povoado ou um casal, é secar a nascente do seu imaginário, é cortar sua ligação com a fonte original de suas histórias, é deixar de irrigar seus símbolos e significados. 

Mas é justamente em tempos sombrios que a ficção se faz ainda mais necessária:  ela diz aquilo que o próprio fato é incapaz de dizer.

Lembro-me da foto de 1940 da Holland House Library, biblioteca londrina. Mesmo bombardeada, com as vigas tombadas e o telhado consumido pelas chamas nazistas, ainda assim, ela seguiu atraindo leitores. A foto é um ícone conhecido sobre a força e o poder da literatura. Gosto de pensar naqueles três homens. Me pergunto quando eles chegaram à biblioteca. Foi logo depois do bombardeio? Deviam estar sedentos por um livro. Qual gênero eles buscavam? Sempre tive a impressão de que o da direita gostava de poesia. O do fundo, de teatro. Ele tem nas mãos o texto de uma peça contemporânea, mas está na dúvida; sempre foi de ler os clássicos. Será que deu uma chance ao novo? 

Independente do livro que cada um levou para casa, tenho certeza de que buscavam neles um sentido para o que viviam naquele momento. Inclusive, aquele homem ao fundo, que gosta de teatro e folheia uma peça contemporânea, certamente já leu Macbeth. Nela, há uma passagem que eu, assim como ele, gosto bastante: “[A vida] É uma sombra contada por um idiota / cheia de som e fúria / que não significa nada”. A vida, essa sequência de fatos, não tem sentido algum. Para dar sentido a ela, é preciso ficcionalizar. Para dar sentido aos fatos, não é preciso retirar deles a verdade. 

Então de onde vem a necessidade de decantar o conto, esperando que as impurezas da ficção afundem enquanto a verdade emerge na superfície da água? 

Resta-me uma última consideração: tal necessidade brota de qualquer conto atual ou desse, em particular? 

“Mal do senhor” fala sobre um traço específico do racismo no Brasil: a incapacidade de tantos brancos de lidar com a experiência de liberdade de pessoas negras em sua totalidade. Isto é, nas conquistas e nas falhas, nas singularidades e nos orgulhos coletivos, nas festas e também nas dores. A investigação levada a cabo pelo protagonista aponta como as relações interpessoais são atravessadas por esse traço do racismo. Talvez essa seja a chave para entender o que motiva a pergunta insistente que me fazem. 

No livro Racismo brasileiro: Uma história da formação do país, Ynaê Santos explica que o racismo no Brasil é propositalmente mantido no campo da opinião, e não do fato:

A desqualificação — ou mesmo o esvaziamento — das ações de cunho racista serve como um importante mecanismo para deslegitimar quem sofre racismo. As discriminações e violências experimentadas pela população não branca muitas vezes são tachadas de exageradas ou, mais recentemente, de “vitimismo". 

Ao ouvir repetidas vezes a pergunta sobre o que é verdade em uma história ficcional que tem como temática o racismo, me questiono se não é uma tentativa aflita de levar a matéria para o campo da opinião. 

Uma vez que a fronteira entre realidade e especulação está borrada no conto, e este, por sua vez, se insere em um terreno já tão arenoso para a sociedade brasileira, sente-se a urgência de invalidar o que é ficcional na história sobre racismo para, finalmente, com o que resta, se elaborar uma opinião sobre o tema. Pois esse é o campo — o da opinião, não o do fato — onde historicamente se debate racismo no Brasil. 

“O que tem de verdade no ‘Mal do senhor’?”, seguirei escutando. Nunca pretendi convencer ninguém de que o mal do senhor, essa chaga que só atinge indivíduos brancos, é real. Mas caso pareça real, caso soe real, tenha cheiro e gosto de real, é essa a verdade do conto. É isso que sobra na malha fina de aço da peneira, na entranha do livro desmembrado, na superfície da água onde a ficção decantou.

 

Vinícius Neves Mariano

Abril, 2025

Ainda da “casa de repouso”

 

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