Rádio Companhia apresenta: "As narradoras"
Rádio Companhia apresenta "As narradoras": minissérie em áudio sobre vozes literárias femininas do século XX
Há 50 anos, no dia 20 de novembro de 1975, morreu Francisco Franco aos 82 anos. Isso representou o fim de uma ditadura feroz que durou quase 40 anos (1939-1975). Digo feroz porque, depois da Guerra Civil espanhola (1936-1939), o franquismo impôs uma ideologia fascista fundada no culto ao Estado e na moral católica, e instituiu uma dinâmica social de revanche, com milhares de presos e fuzilados, que vigiou qualquer dissidência e estabeleceu uma divisão entre vencedores e vencidos. A sociedade catalã sofreu especialmente, pois a língua catalã foi proibida e qualquer manifestação cultural era vista como suspeita. Esse mundo do final da ditadura, marcado pelo silêncio, a repressão, o desentendimento entre gerações e a vontade de mudança é o que O tempo das cerejas retrata. A ação está situada simbolicamente em 1974, quando ocorreu a execução capital do anarquista catalão Salvador Puig Antich, a última do franquismo, e nos apresenta Natàlia, uma personagem que volta para Barcelona depois de um exílio voluntário de uma década na França, na Itália e no Reino Unido. O encontro com a família, a lembrança da repressão política e moral que a fez fugir, a vontade de se implicar agora na transformação e, sobretudo, a dinâmica histórica dessa sociedade traumatizada é o que este complexo romance nos entrega.

Traduzir O tempo das cerejas do catalão para o português brasileiro foi um desafio, pois implicou mergulhar na memória familiar, em feridas profundas provocadas pela guerra. Lembrei-me de histórias cochichadas, olhares nervosos, dos relatos da fome do pós-guerra. Meu avô lutou na Guerra Civil com 16 anos e foi preso pelos franquistas na Batalha do Ebro, uma das mais terríveis do final da contenda. Ele pôde se salvar, mas seu irmão mais velho morreu lá. Depois de dois anos em um campo de concentração em León, conseguiu voltar para Barcelona e reconstruir sua vida, sob as regras dos vencedores, que proibiram sua língua e forma de ver o mundo. Eu, que nasci em 1977, conheci meu avô quando tudo tinha terminado, mas as marcas profundas desse tempo longo sob a repressão continuavam lá. Assim, a tradução mexeu bastante comigo, porque Montserrat Roig consegue descrever essas dinâmicas a partir das trajetórias e dos gestos cotidianos de Joan e Judit, pai e mãe da protagonista, totalmente incompreendidos por ela, por causa dos silêncios impostos pelo regime.
Outro dos grandes desafios do romance é sua riqueza descritiva. Roig combina o dinamismo narrativo com a sutileza do detalhe e, ao mesmo tempo que retrata de forma poética as mudanças e comoções das personagens, mergulha na cultura material da época. Ao se tratar de objetos e realidades de há mais de cinquenta anos, tivemos que realizar muita pesquisa para traduzi-los para o português brasileiro, não só em dicionários ou na imprensa da época, mas consultado diretamente pessoas que viveram nesses anos. O romance é estruturalmente muito complexo, pois combina diversas épocas: o começo do século vinte, a guerra civil, o pós-guerra nos anos quarenta, os anos sessenta da repressão franquista e os anos setenta do presente narrativo. Além disso, os diálogos incluem-se sem transição no relato. Para conseguir esse ritmo narrativo intenso e a acuidade dos detalhes foi essencial a parceria com be rgb. Juntes, em conversas incontáveis, comparávamos realidades e procurávamos as palavras em português brasileiro para nos aproximar do universo da autora.
Realizar a primeira tradução de Montserrat Roig para o português brasileiro é uma emoção e uma honra para nós, pois ela, junto com Mercè Rodoreda e Maria-Mercè Marçal, foi uma das grandes escritoras catalãs do século XX. Quem no Brasil queria conhecer sua obra até agora, acabava lendo as traduções para o espanhol, o que não deixa de ser uma contradição, por toda a tensão histórica que se estabelece entre essas línguas. Montserrat Roig escreveu uma trilogia para reconstruir a memória de sua época, em que O tempo das cerejas (1978) é o romance central. Ramona, adéu (1972) e L’hora violeta (1980) completam o ciclo. Mas é especialmente a memória das mulheres que importa à autora, como foram silenciadas e excluídas durante o franquismo, reduzidas à maternidade compulsória, e como lutaram por recuperar sua autonomia e um lugar relevante na sociedade. O feminismo de Montserrat Roig conecta diretamente com nossa época. Natàlia, a protagonista, em sua busca por si mesma, como profissional e lutadora pela democracia, parece nos dizer que procurar pelo tempo das cerejas sempre será preciso.
Meritxell Hernando Marsal
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Meritxell Hernando Marsal (Barcelona, 1977) é professora no Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. Traduz do catalão em parceria com be rgb e tem traduzido para o português obras das escritoras Maria-Mercè Marçal, Montserrat Roig, Marta Orriols e Eva Baltasar. A tradução de Degelo de Maria-Mercè Marçal foi finalista do Prêmio Jabuti em 2020.
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É primavera de 1974, e Natàlia Miralpeix acaba de voltar a Barcelona depois de mais de uma década vivendo entre a França e a Inglaterra. O regime franquista está próximo do fim, e uma atmosfera de mudança cultural e política impregna a cidade. Os mais novos já vislumbram o despertar de um novo tempo, enquanto a geração mais velha ainda lida com as marcas da Guerra Civil.
Todos na família de Natàlia – o pai, a tia, o irmão, a cunhada e o sobrinho – estão buscando dar sentido à vida, num momento em que passado e presente parecem irreconciliáveis. Em meio a esse turbilhão, a protagonista também precisa lidar com lembranças da juventude, quando viveu uma paixão que a transformaria para sempre.
Publicado pela primeira vez em 1976, O tempo das cerejas conquistou o sucesso do público e da crítica e se tornou um livro incontornável da literatura de língua catalã, traduzido internacionalmente e que vem sendo redescoberto por uma nova geração de leitores. Sua virtude reside na habilidade de Roig de entrelaçar o pessoal e o político, construindo uma narrativa polifônica em que a voz de cada personagem é parte de um mosaico de uma época que está prestes a deixar de existir.
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