
Literatura Brasileira Viva: O melhor da ficção nacional, conto a conto
A terceira edição da campanha de valorização da literatura nacional promovida pela Companhia das Letras em conteúdos, promoções e eventos.
Por Cássio Leite Vieira
No final do século XIX, havia, entre as lideranças da física, a impressão de que essa disciplina estava praticamente acabada, que pouco havia para se descobrir. Chegava-se mesmo a sugerir aos jovens que optassem por outra profissão, alertando-os de que poderia não haver temas relevantes para a pesquisa nessa área.
Para corroborar essa interpretação de "finitude" do então programa da física, historiadores da ciência costumam citar um discurso feito em meados de 1900 por um dos cientistas mais importantes à época, o britânico Lorde Kelvin. Em sua fala, esse luminar alegava haver apenas duas nuvens obscurecendo o céu cristalino da física. Frente a esse cenário de "dever cumprido", Kelvin sugeria um novo programa: aprimorar as medidas das constantes da natureza (velocidade da luz, por exemplo).
Talvez essa interpretação da história – algo anacrônica, sem dúvida – se mantenha até hoje por conta da irresistível ironia que ela arrasta consigo: pouco depois, aquelas nuvens – que deveriam ser prontamente dizimadas pelos físicos – dariam origem aos dois pilares que sustentam a física contemporânea: a teoria quântica e a teoria da relatividade geral.
A primeira trata dos fenômenos no diminuto mundo atômico e subatômico. A segunda lida com tudo que é "gigantesco": corpos com massa superior à das estrelas e velocidades próximas à da luz no vácuo (300 mil km/s).
De modo simples, uma é a física do mundo muito microscópico; a outra, do muito macroscópico.
Idealizadas há cerca de 100 anos, tanto a teoria quântica – e sua vertente mais complexa, a mecânica quântica, desenvolvida principalmente na década de 1920 – quanto a teoria da relatividade geral – que bem poderia ser chamada simplesmente teoria da gravitação de Einstein – têm, desde então, mantido distanciamento respeitoso entre si: teimam em não querer se juntar em um só corpo teórico.
Os obstáculos fenomenológicos para essa unificação não são triviais, e a complexidade matemática é para poucos (mesmo para físicos). Se esses impedimentos forem vencidos, esses dois poderosos ferramentais teóricos se juntariam na chamada gravidade quântica, um tipo de "teoria final". De certo modo, o próprio Einstein digladiou-se com essa "fusão" nas duas décadas finais de sua vida. Sem êxito. Podemos desculpá-lo: ao morrer, em 1955, estava simples e visionariamente adiantando uma física típica do século XXI.
Hoje, temos basicamente duas grandes frentes de pesquisa (ambas esmagadoramente teóricas) que enfrentam essa tremenda dificuldade. A primeira dessas vertentes é a chamada teoria de supercordas, na qual partículas são tratadas como diminutas "cordas" (daí o nome) em vez de "pontos", como a teoria convencional.
A segunda é a chamada gravidade quântica em loop – eis aqui o tema central do livro A realidade não é o que parece – a estrutura elementar das coisas, do físico italiano Carlo Rovelli, recém-lançado pela editora Objetiva.
Construída passo a passo, a teoria de supercordas prevê a existência de um novo "zoo" de partículas subatômicas – hoje, o cardápio desses fragmentos de matéria (elétron, prótons, nêutron, quarks, fótons etc.) passa de cem itens. Havia esperança de que as tais partículas supersimétricas deixassem vestígios nos experimentos feitos no mais potente acelerador do planeta, o LHC, do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Suíça). Mas elas não apareceram.
Rovelli aproveita esse revés do, digamos, concorrente para propagandear a gravidade quântica em loop e incensar o cenário revelado por essa teoria – que ele ajudou a alargar –, expondo-a e defendendo-a com paixão nas cerca de 280 páginas do livro, dividido em treze capítulos.
Primeiramente, ele diz que a gravidade quântica em loop – diferentemente da teoria das supercordas – está alicerçada no que está muito bem provado: mecânica quântica e relatividade geral, bastando acrescentar a esses dois pilares um ingrediente extra: teoria da informação.
O cerne da gravidade quântica em loop é propor que o espaço seja quantizado. Explicando: que haja um "naco" mínimo e irredutível de espaço, que, portanto, não pode ser dividido infinitamente. Isso faria com que o campo gravitacional passasse a ter características semelhantes às de outros campos conhecidos na natureza (eletromagnético, por exemplo).
As consequências dessa quantização são muitas, como explica Rovelli didaticamente, entremeando filosofia, artes, literatura, poesia etc. Um detalhe saboroso: ao tornar o espaço um tipo de "espuma" – com suas diminutas e infinitas bolhinhas de sabão –, a consequência mais inusitada é que espaço e tempo... deixam de existir. Mesmo sem esses elementos básicos, a gravidade quântica em loop segue fazendo sentido – pelo menos, do ponto de vista teórico.
Foi no século XIX que surgiram as primeiras obras de divulgação científica de apelo mais popular – e aqui podemos incluir aquelas de Darwin e Boltzmann, por exemplo. Popularizar a ciência naqueles tempos era falar com uma fatia mínima da população: alfabetizados (ainda poucos) com interesse em ciência (menos ainda). E a linguagem usada era elegante – simples, se comparada à de artigos científicos –, mas longe da empregada hoje por um mercado editorial de massa e planetário.
Ao longo dos últimos cem anos ou mais, autores de popularização da física bem que poderiam ser divididos em dois grupos distintos entre si: i) "restritos", cujo foco das obras se restringe apenas ao tema abordado – norte-americanos têm uma tendência para esse viés; ii) "generalistas", que apresentam a física em um contexto cultural mais amplo – europeus são mais comuns nessa corrente. Rovelli é um membro (tudo indica, fervoroso) deste último grupo. E desde o primeiro capítulo ele deixa isso claro.
Por conta de cenários fantásticos – e a física fornece muito substrato para isso –, há trechos de A realidade não é o que parece que lembram contos de grandes escritores italianos, como Primo Levi, Italo Calvino e Dino Buzzati. Nessas passagens, Rovelli, por vezes, deixa de lado a física, para se embrenhar – com prazer similar – pelas humanidades, indo de Santo Agostinho a Dante com desenvoltura.
Um "porém" da obra: Rovelli, por vezes (e surpreendentemente), produz notas explicativas muito técnicas, com jargão da área, o que destoa do tom didático que ele imprime a seu roteiro. E isso pode deixar o leitor um tanto desamparado – os que têm algum conhecimento de exatas passarão incólumes por esses trechos.
Uma crítica comumente feita pelos próprios físicos a seus colegas que se dedicam à unificação da mecânica quântica com a relatividade geral é que os efeitos que brotam dessas equações matemáticas são extremamente tênues – alguns na casa de dezenas de zeros depois da vírgula (0,000000000000...). É um patamar praticamente inalcançável mesmo pelo estado da arte da tecnologia atual. Portanto, comprovar essas previsões ainda é um grande desafio para equipamentos e detectores deste início de século.
O livro de Rovelli é um quadro do que a física e seu ferramental matemático podem oferecer sobre como é a natureza (ou a realidade) em uma escala impensavelmente pequena. O resultado não é só interessante (fantástico, por que não?), mas também bonito. É prazeroso saborear o que a criatividade humana, no sentido mais amplo possível, pode nos oferecer – paradoxalmente, é o mesmo H. sapiens das guerras, genocídios, ganância etc.
Rovelli deixa claro – principalmente, ao final do livro – que a torre de gravidade quântica que ele e seu colegas têm construído com símbolos abstratos e fenômenos para enxergar mais longe é apenas uma das várias construções do intelecto humano. Nesse sentido, o livro vale a pena também para aqueles com formação em humanidades: é uma chance de diminuir a distância entre as chamadas "duas culturas".
Do alto de seu vasto conhecimento humanístico, o renomado físico britânico Freeman Dyson escreveu, em 2012, em um de seus ensaios (sempre substanciosos): “Ciência é apenas uma pequena parte da capacidade humana. Obtemos conhecimento de nosso lugar no universo não só da ciência, mas também da história, da arte e da literatura”.
Se a gravidade quântica em loop é (ou não) a palavra final sobre a realidade última, só o tempo – que ironicamente essa teoria descartou – e os dados experimentais irão dizer. Até lá, vale se aventurar pela tapeçaria que Rovelli alinhava, ponto a ponto, para o leitor. Aquele que assim o fizer certamente ampliará seu cabedal de conhecimento sobre os desígnios de como a natureza costurou a realidade.
Cássio Leite Vieira – trabalha no Núcleo de Comunicação Social do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ). Dedica-se à pesquisa em história da física (principalmente, do Brasil) e está preparando, para a Objetiva, com Antonio Augusto Passos Videira, da UERJ, um livro sobre a história da cosmologia.
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