A materialidade do livro como elemento essencial da narrativa e da experiência do leitor

19/11/2025

Se você parar - e reparar - em qualquer livraria infantil, vai notar de cara a imensa variedade de  tamanhos, cores, formas e detalhes dos livros. E isso, só batendo os olhos na capa. Dentro, mudam os tipos de papel, as paletas de cores, a presença de recursos como abas, recortes, transparências. O que talvez pareça apenas cuidado estético, na verdade é muito mais. A materialidade do livro também faz parte tanto da experiência de leitura quanto, em muitos casos, da própria narrativa. “O livro é o corpo que carrega a história. Por isso, o formato de cada livro remete muito a como a história vai ser contada. Eles estão atrelados”, explica Raquel Matsushita, autora de texto e imagem de mais de uma dezena de obras - incluindo Vovó veio do Japão (Companhia das Letrinhas, 2018), junto com Janaina Tokitaka, Mika Takahashi, e Talita Nozomi, e  A fuga (Companhia das Letrinhas, 2026), assinado com Blandina Franco. 

Com Bárbaro (Companhia das Letrinhas, 2013), de Renato Moriconi, o leitor entende o porquê do formato verticalizado do livro só no final. Em Vai embora, grande monstro verde (Brinque-Book, 2009), de Ed Emberley com tradução de Gilda de Aquino, e mais recentemente também em Respire fundo, grande monstro vermelho (Brinque-Book, 2025), de Ed Emberley com tradução de: Elisa Zanetti, não houvesse o trabalho feito pelas facas de corte, que criam a ilusão de que o monstro vai se revelando a cada virada de página? Ou ainda se Puxa! Puxa! (Brinque-Book, 2024) de Tino Freitas, Leo Cunha e Weberson Santiago, não fosse em formato sanfona - como o cabo de guerra que é o fio condutor da história?

Vai embora, grande monstro vermelho

Uma olhadinha dentro de Respire fundo, grande monstro vermelho (Brinque-Book, 2025)

Sem todas essas escolhas, muitas histórias talvez pudessem até ser contadas, ainda que o leitor não tivesse a mesma experiência. Mas em outros livros, a história depende de escolhas que envolvem também a materialidade do livro. Isso porque, no projeto de um livro, especialmente um livro ilustrado, tudo comunica. Tudo é parte da narrativa - incluindo o livro enquanto objeto. “A materialidade é também narrativa. O livro ilustrado é um tripé - imagem, texto e projeto-gráfico. São esses elementos que formam o livro, que é o local onde se misturam todas essas vozes”, explica Raquel. É por isso que no trabalho de edição de um livro cada escolha é feita com intencionalidade, a partir do tipo de experiência que se quer oferecer ao leitor e da relação estabelecida com a narrativa. Se a capa vai ser dura ou flexível, quais serão as dimensões do livro, que papel vai ser usado na capa, que papel vai ser usado no miolo, se as ilustrações vão ter uma paleta mais fechada ou mais aberta, com mais ou menos contraste… 

Lá e aqui (Pequena Zahar, 2015), de Carolina Moreyra e Odilon Moraes, é um livro quadrado e com dimensões relativamente pequenas: 16cm x 16cm. Essa escolha foi feita porque a narrativa fala com poesia sobre o divórcio, partindo de uma casa que vira duas. O livro, portanto, devia ser pequeno como uma casinha. Nem todas essas escolhas são percebidas de uma forma tão aparente na relação com a narrativa. Mas todas elas influenciam a relação que o leitor vai estabelecer com a narrativa.

Por exemplo, talvez você não tenha se dado conta, mas quanto maior é a dimensão da página, maior é o tempo que a virada de página demora. A experiência do leitor muda, porque esse tempo influencia o ritmo da narrativa. “Quando a gente pensa nessa fragmentação dentro do livro, que é a virada de página, a gente tem o revelar e o ocultar, o esconder. É o “drama da virada de página’, como se diz”, explica a autora e ilustradora Clara Gavilan, co-coordenadora pedagógica da Pós-Graduação em Criação de livro Ilustrado n’A Casa Tombada, que assina Berço, balanço, colinho, neném (Brinque-Book, 2025) com Rafaela Deiab e Tieza Tissi. Ela chama atenção também para a importância da gramatura do papel na experiência leitora. “Quando a gramatura é maior, é mais fácil de virar a página, de segurá-la. Quando a gramatura é fina demais, você vê o que tem atrás e eu acho isso muito problemático, a menos que seja intencional deixar que a imagem da próxima página se revele”, explica. 


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Entre o ideal e o possível: o exercício de criar a melhor experiência ao leitor

Formas (Companhia das Letrinhas, 2025) de Rodrigo Andrade

Formas (Companhia das Letrinhas, 2025) de Rodrigo Andrade para a Coleção Canoa


É claro que essas escolhas em relação à materialidade influenciam - e muito - o custo de prateleira do livro. Um papel mais nobre, uma capa dura, o uso de cores especiais: tudo isso vai encarecendo a impressão. Por isso, dentro das editoras, fazer o exercício de transformar o livro dos sonhos em um livro real, oferecendo a melhor experiência possível ao leitor, é  uma constante. E quem pensa em todos os caminhos possíveis para isso é o designer. Troca uma coisa aqui, diminui outra ali. E, aos poucos, o livro vai encontrando um caminho possível. Raquel, que além de autora, é designer de formação, e tem prática na condução desses projetos gráficos, conta uma experiência na produção de A fuga. O livro foi pensado de forma que a lombada fosse o tronco de uma árvore e os galhos fossem saindo para a capa e a quarta capa, e se tornando cada vez mais finos. “Nesse projeto, colocamos uma orelha ‘dumbo’ [quando a orelha do livro é muito grande, para dar maior continuidade à capa], que é algo que agrega custo. Para mantermos essa ideia sem que o livro ficasse muito caro, tiramos a cor da contra capa. Foi a solução que encontramos. Mas não tem uma receita de bolo”, explica. 

Essa escolha de ter ou não uma orelha, por exemplo, pode estar relacionada tanto à narrativa, como no caso acima, ou como uma solução para o livro-objeto. O autor, Rodrigo Andrade, que assina Cores (Companhia das Letrinhas, 2025), Números (Companhia das Letrinhas, 2025) e Formas (Companhia das Letrinhas, 2025) para a Coleção Canoa,  cita um exemplo em que a gramatura escolhida para o papel da capa era muito fina, mas o design foi capaz de encontrar um caminho: “Foi pensada uma orelha para ajudar o livro a aumentar a resistência”, conta. Para ele, “o design pode atuar dando algumas soluções para encaixar o desejo do autor às condições da editora”.

 

A materialidade conta muito na leitura e na nossa relação com o livro. Quando a gente descarta essa parte, não é a mesma experiência”, Clara Gavilan, autora e professora

 

Algumas vezes na história as políticas públicas de acesso ao livro infantil do Brasil, os editais de programas de distribuição de livros fizeram exigências que atingiam justamente a questão da materialidade do livro. Por motivos financeiros que afetam a obra em si, o armazenamento dela e a logística de circulação. No entanto, como avançamos muito nas possibilidades de criação de livros - e toda esta diversidade de possibilidades de se narrar uma história - o risco de modificar a experiência leitora promovida pela obra torna-se um dilema. Diminuir a gramatura do papel, por exemplo, pode ocasionar problemas na fruição leitora como Clara Gavilan mencionou acima se referindo à transparência das páginas e, até, encurtar o tempo de vida daquela publicação nas estantes. “A materialidade não é besteira. Não estamos falando só do custo do livro, mas de uma questão de durabilidade”, defende Clara.

E por que é um dilema? Porque o sonho maior é que o livro chegue. “Eu vou considerar sempre a realidade do nosso país, achando caminhos para que o livro fique mais acessível. Temos que considerar a viabilidade do contexto. Esses programas de distribuição fazem o livro chegar em lugares que não chegaria”, Raquel Matsushita que, sendo uma das mais experientes designers de livros de nosso país, não se cansa de procurar soluções, mesmo depois que o livro já esteja pronto.

Para Rodrigo, o mais complexo é tentar não se perder dentro das adequações. “As limitações impostas de um projeto já realizado são a maior dificuldade para manter a materialização”, comenta. Essa equação que inclui projeto gráfico ideal e custos reais não é simples de se resolver. Produzir livros incríveis é o que todo mundo quer. E fazer com que esses livros cheguem ao maior número de pessoas possível, mais ainda. Mas não dá para falar na importância da materialidade na experiência leitora sem considerar o contexto de país em que vivemos. 

É por isso, que quando falamos em grandes programas de distribuição de livros, muitos autores e editoras já se antecipam, prevendo que livros que publicarão, podem, eventualmente, ser selecionados. E, assim, já pensam em recursos que permitam adaptar melhor as obras aos formatos que são padrão nesses programas. Produzir ilustrações com uma margem maior para corte é uma das ideias que costumam ser colocadas em prática. 

 

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A materialidade como ponto de partida para a criação


Muitas vezes, a materialidade é o ponto de partida para a criação de uma obra. Foi assim que aconteceu com Rodrigo, quando ele foi convidado para criar histórias para a Coleção Canoa, que oferece literatura de qualidade a preços acessíveis. “Para a Coleção Canoa, os livros têm um número específico de páginas, são 32. Então, eu precisava desenvolver uma narrativa que coubesse nesse parâmetro”, explica o autor. 

Ele conta que, para a missão, primeiro estudou todas as levas anteriores de livros da Coleção Canoa. “Eu sabia que o papel a ser usado era um offset, que tem por característica absorver mais tinta. Por isso, eu sabia que tinha que trabalhar bem o contraste das ilustrações para ter mais nitidez - eu não conseguiria ter tantas nuances como no couchet. A saída foi pensar em uma pintura com uma pegada um pouco mais ‘plástica”, comenta. O resultado são três livros que funcionam como uma pequena série para leitores da primeira infância, que apresenta livros de conceitos iniciais de forma contextualizada e surpreendente: Cores, Números e Formas.  

Entre as limitações como objeto e as barreiras que a imaginação transgride, há muitos caminhos possíveis para o livro. O desejo sempre é criar obras que deem suporte às histórias, como um corpo capaz de dançar acompanhando a música. É quando isso acontece que a magia da literatura ganha robustez. E o leitor, asas.

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