A experiência de Caio Zero como educador: " a escola me alimenta enquanto autor"

07/11/2025

Talvez você conheça Caio Zero pelo premiado Aqui e aqui (Companhia das Letrinhas, 2023), que retrata as fantasias de um menino sobre um fato curioso: como é que ele dorme todos os dias em uma casa e acorda em outra? Com sensibilidade, o livro retrata experiências pessoais do autor, filho de uma mãe solo que precisava trabalhar e que, como a mãe do menino da história, contava com outras mulheres como rede de apoio. É um livro que toca em questões fundamentais para pensar sobre o Brasil de hoje, como jornada de trabalho, economia do cuidado, desigualdade racial.

Caio Zero com 'Aqui e aqui'

Como autor, Caio sabe bem mobilizar suas experiências pessoais e todo seu repertório de arte e de mundo para contar histórias. E como educador, tudo isso o ajuda a se conectar com as crianças. Formado em Belas Artes na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), ele atua como arte-educador na rede pública, no Ensino Fundamental. “A licenciatura fazia parte do meu curso e eu me encontrei muito nas disciplinas de educação. Sinto que me ajudou a compreender o mundo, as pessoas, a formação da sociedade. E essa formação me ajuda muito nos livros que escrevo”, reflete.

Sua primeira experiência com educação foi na organização de oficinas, espaços em que ele considera até hoje os mais abertos para trazer e misturar mais referências. “São os projetos que eu consigo me colocar totalmente e colocar mais livros também”, explica. Em uma oficina de zine, por exemplo, ele começou com um slam de poesia, foi para o rap, depois trouxe a fotografia de Gordon Parks (1912-2006) [diretor de cinema, fotógrafo, músico, poeta, romancista, jornalista e ativista norte-americano] e apresentou o livro Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela (Editora Cobogó), de Leda Martins, que fala sobre a relação do corpo na arte e sobre filosofia das africanidades. Tudo isso não se conecta só ao tema da oficina em si, mas mostra um tanto das referências do próprio Caio.

E na escola, onde “o cronograma engessa um pouco essa experiência multilinguística”, como ele mesmo explica, os livros e a vivência do autor, que também foi um aluno da escola pública, ajudam a ir além do que deve ser trabalhado no currículo. "Quando eu entrei na escola como professor, para trabalhar na região oeste do Rio, eu, que sempre fiz escola pública, pensei: ‘Cara, eu vou estar conversando com crianças que eu já fui em um momento da minha vida’ E foi muito legal ver o quanto de histórias com as quais a gente se conecta”. 

Sua primeira experiência como arte-educador dentro da escola foi com crianças nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Nesse período foi possível desenvolver projetos de uma forma mais flexível, porque não há um currículo tão rígido para as artes. “ Eu acho fantástico trabalhar com crianças nessa fase porque elas tentam mais, desenham, criam, são mais corajosas. E eu conseguia integrar muito mais a literatura às práticas artísticas”, lembra. 

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A leitura que esbarra em muitas dificuldades

Atualmente, Caio está como arte-educador nos anos finais do Ensino Fundamental, no município de Japeri, na Baixada Fluminense, e precisa dar conta de desafios diferentes para integrar a literatura à arte. “Há muitos alunos em idade mais avançada que ainda não estão alfabetizados. E esse é mais um motivo para trabalhar com o livro e estimular a leitura”, explica. Vale lembrar que, na organização de disciplinas propostas na BNCC, a Base Nacional Comum Curricular, arte está na área de Linguagens, junto com Língua Portuguesa e Educação Física. Caio conta que há uma integração com outros professores para pensar diferentes formas de trabalhar o livro em sala. Às vezes ele é quem compartilha com outros professores uma prática artística inspirada em uma leitura que fez em voz alta e pede ajuda para pensar outras formas de trabalhar com aquele livro. Ou o contrário: ele é quem propõe uma prática artística que envolve um livro que os outros professores já estão trabalhando. “Em sala, a gente tenta estimular ao máximo a escrita aliada ao desenho para fazer essa conexão entre palavra e imagem, que é o campo em que eu me insiro”, explica o autor-educador.

Ele tenta sempre relacionar o conteúdo a ser trabalho ao que faz parte do entorno das crianças. “Se eu estou falando de forma, consigo trazer um grafite, pensar na caligrafia dos nossos pais, por exemplo? Tem que fazer sentido para eles. Precisa ter a ver com as pessoas que estão ali. E, muitas vezes, os livros conseguem conectar com os alunos de uma forma que o programa da escola não dá conta”, defende. Ele trabalhou, por exemplo, com Vejamos (Brinque-Book, 2024), feito em parceria com Otávio Junior, para falar com as crianças da possibilidade de ter diferentes olhares sobre o mundo - uma realidade que está conectada à diversidade que uma escola abriga, com muitas crianças diferentes, que reúnem vivências, gostos e experiências diferentes - todas válidas.

“Eu falo que a escola me alimenta enquanto autor. Isso às vezes acontece em nível de conteúdo, de falar de algo que está na BNCC, por exemplo. Mas tem coisas que fazem parte da minha experiência como aluno e de realidades que os alunos vivem diariamente”, explica. Ele cita o próprio Aqui e aqui como uma possibilidade de conexão com os estudantes. “O livro fala de relações que não estão no currículo. Fala de memória, de uma determinada composição familiar, da família que se cria a partir do cuidado e não do laço sanguíneo, de jornada de trabalho e relações econômicas - tudo faz parte de uma realidade que os alunos vivem na pele."

Ilustração de 'Aqui e aqui'

Ilustração de 'Aqui e aqui'

 

 

A necessidade de falar de relações raciais além do Dia da Consciência Negra


Quando perguntamos a Caio o que ele ainda acha que falta nas práticas escolares, a resposta já está na ponta da língua: as relações étnico-raciais que, para ele, ainda são trabalhadas de forma insuficiente. “Dificilmente, eu vejo professores trabalharem essa questão o ano todo. Vejo crianças criando uma dissociação muito grande sobre o que elas são para chegar só em novembro a escola vindo falar da potência da negritude. Isso não cria espelho”, defende.

Como exemplo dessa dissociação, ele conta sobre um exercício em que pedia para os alunos se olharem em um espelhinho e depois fazerem um auto-retrato. “ As dissociações foram muito gritantes. Uma aluna negra de cabelo enrolado desenhou uma personagem branca, de cabelo loiro. Quando perguntei quem era, ela respondeu ‘sou eu’. E então eu perguntei: ‘Mas você se vê assim?"

A partir daí, o educador foi tentando estabelecer comparações entre ele e ela. “A gente começa a se reconhecer a partir de quem está mais próximo. Eu fui dizendo ‘meu cabelo é cacheado, mas não como o seu’. ‘Minha pele é negra, mas não igual à sua’. Então, eu me desenhei e dei o desenho para ela. E ela refez o desenho de si mesma, agora marrom e com cachinhos”, relembra. Para ele, um episódio como esse evidencia que só a Semana da Consciência Negra não dá conta de combater uma estrutura muito maior de desigualdade.  A escola é um espaço de convivência em que a diversidade faz parte e pode enriquecer ainda mais a experiência da toda a comunidade escolar. Mas para isso, as diferenças precisam se nomeadas e laorizadas. Ampliar os espaços para arte na educação pode ser um caminho para alargar as percepções sobre o mundo e sobre si mesmo.

(Texto: Naíma Saleh)

 

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