Em 2009, a escritora carioca Sonia Rosa nos conta a história de um grande tesouro. Uma menina havia se (re)encontrado com a história de sua família. Ao lado dos desenhos da pernambucana Rosinha, Sonia traz uma menina narradora falando sobre a bisavó de sua avó, que veio da África num navio negreiro para o Brasil. “Todos os parentes e amigos que vieram ficaram pelo caminho... Ela ficou sozinha no mundo, numa terra distante e na condição de escravizada.” Ela se chamava Monifa, que significa “eu tenho sorte”.

Sonia Rosa e seus pequenos leitores de Os tesouros de Monifa (Brinque-Book, 2009)
O aperto no coração deste texto que traz estas questões logo no começo vai se dissipando conforme a história caminha. Virando as páginas, descobrimos que a menina havia ganhado um tesouro deixado por Monifa: diários. “Quanta alegria, depois de tantos anos, conhecer os seus sonhos, suas simpatias, suas rezas, algumas partes das músicas preferidas dela, as esperanças, os sustos, e ainda as notícias da época em que viveu...”. Em Os tesouros de Monifa (Brinque-Book, 2009), Sonia é Sonia, digamos, em sua essência. Pessoaliza histórias que podem ser narradas apenas como “História Geral/História do Brasil” e aproxima leitoras e leitores de um país que precisa cuidar de suas memórias. Principalmente, as invisibilizadas de propósito como a do povo negro em diáspora.
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Nasce uma escritora
É em sala de aula que Sonia Rosa deseja ser escritora. Em 1995 lança O Menino Nito (com ilustrações de Victor Tavares, pela Pallas Editora), seu primeiro livro para as infâncias. Na história, um menino que chorava por tu-do. Da família, sem saber o que fazer, só ouvia “Acabou o chororô”, “Homem não chora”, “Você é macho!”. Ele só tinha uma saída: engolir o choro. E foi o que aconteceu. “Ele passou a engolir uma média de vinte choros por dia. Teve um dia em que cortou o pé na rua e engoliu trinta choros em apenas duas horas.” Não foi apenas o choro que parou, como podem imaginar: Nito parou de correr, de brincar, chegou a ficar doente. E o médico receitou que ele “desachorasse” como cura.
“Eu pautei o incômodo”, disse Sonia Rosa no podcast Livros e Infâncias em conversa com as pesquisadoras do tema, Ananda Luz e Cristiane Rogerio. Conta que à época, era uma professora “verdinha” na literatura para as infâncias, embora já estivesse acessando autoras como Lygia Bojunga e Ana Maria Machado. “Mas assim, era uma literatura muito embranquecida. Ninguém falava em questões negras. Aí você tinha um Menino Marrom (livro de Ziraldo de 1987) que tem questões, aí tinha a Menina Bonita do Laço de Fita (de Ana Maria Machado, 1986) que tem outras questões e que na época não eram vistas”, diz. “Quando eu chegava nos lugares me perguntavam: ‘mas por que um menino negro?’ Aí eu dizia: ‘é igual o meu irmão. É igual o meu primo. ‘Mas por que um menino?’ Na verdade, a pergunta escondia muita coisa. Escondia o próprio racismo”.
Foi com as crianças, que se deu conta de que ela mesma teria que fazer algo. E foi estudar e procurar chances de publicar suas histórias. Vivendo estudo e prática artística juntos, logo foi para o mestrado, onde pôde escrever sobre sua trajetória e marcá-la no tempo. Feito no Cefet/RJ, virou o livro Literatura infantil afrocentrada e letramento racial: Uma narrativa autobiográfica, lançado pela Jandaíra em 2022. Hoje está aposentada da sala de aula, mas nunca para de frequentar escolas. Está sempre com educadores e com as crianças, espalhando seu sorriso de força. Impacta na literatura e na produção acadêmica e promove conversas necessárias e urgentes para todas as idades. “Fico feliz de poder contribuir nessa mudança de mentalidade, porque os livros formam mentalidade e eu trago para dentro dos meus livros crianças negras em protagonismo, em amor, em beleza. Faz uma diferença para uma criança negra que lê e faz uma diferença para uma criança branca que lê. A criança negra se identifica, se fortalece e a criança branca amplia seu conhecimento de mundo. Entende? E como é bonita a diversidade”, celebra Sonia em conversa exclusiva com o Blog Letrinhas.
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Sobre biografias e as escolhas da escrita
Em 2023 o mercado da literatura infantil ganhou uma beleza especial para as estrantes: o livro Meu nome é Raquel Trindade, mas pode me chamar de Rainha Kambinda (Pequena Zahar, 2023), que teve ilustrações de Bárbara Quintino. Na dedicatória, a profunda justificativa da obra: “Dedico este livro à querida artista plural e heroína Raquel Trindade, pela sua admirável força ancestral e sua contribuição incansável na luta pela representatividade negra em todos os setores da sociedade brasileira.” Antes da história começar, um mergulho no “que veio antes”, com um poema de Solano Trindade, pai de Raquel.
Na minh’alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação.
No livro, todas as artes que Raquel esteve envolvida, com Sonia narrando em primeira pessoa, como se a própria Raquel pudesse narrar a si mesma. A obra vem em tom de convite, convocação, como se víssemos uma biografia-festa, como se pudéssemos ouvir as batidas dos corações de Raquel e quem a acompanhava, ao som do pandeiro, tambor e tamborim, berimbaus, agogôs, caxixis e mais. Sônia tem esta particularidade de contar histórias a partir de pessoas. “Sônia torna pública as histórias conhecidas por poucas pessoas. E nos revela outras camadas do nosso país. Foi uma das primeiras a trazer biografias negras para a roda”, analisa Ananda Luz, mestre no tema educação e relações étnico-raciais e co-coordenadora dos cursos de pós-graduação O Livro Para a Infância e Educação e Relações Étnico-raciais, n’A Casa Tombada. “Não só traz uma Esperança Garcia (biografia pela Pallas Editora em 2012), por exemplo, como também olha para as pessoas do cotidano, como o Menino Nito, que ela conhecia. São pessoas que transformam a vida de quem está ao redor.”

Ilustração de Bárbara Quintino em Meu nome é Raquel Trindade, mas pode me chamar de Rainha Kambinda (Pequena Zahar, 2023)
Em Os tesouros da Monifa, a ancestral da menina escreve uma carta aos descendentes. Nela fala, inclusive, sobre o poder da escrita. “Escrever é uma maneira de se anunciar ao mundo e de se sentir mais gente. É também uma forma de não enlouquecer, de suportar”. Sonia diz que a escrita tem seu sabor – “é o doce mais gostoso”- mas não é todo o processo assim." A história começa a ser escrita para dentro. Ela começa dentro da minha cabeça. Vai povoando a minha cabeça, é como se eu escrevesse para dentro. Depois, quando eu vou escrever mesmo, eu tenho que puxar, retirar, pescar essa escrita que está lá dentro para fora para o papel ou para o computador. Aí é um outro processo, de melhorar”, conta.
Sonia lembra que nem tudo é “vida real”. Mas é vida. “A história de Monifa não é uma história que tem uma referência com a vida real, foi uma história inventada. Mas aquela menina poderia ser eu, porque eu fui uma menina que vivia uma história de ser penteada, por exemplo. Minha mãe e minha tia penteavam meus cabelos fartos que eu só cortei com 11 anos, então eu tinha muito, mas era muito cabelo. E se passavam horas. Pentear o cabelo numa perspectiva de famílias negras é um evento, porque são cabelos que exigem uma dedicação, um cuidado, um tempo. Mas eu gosto de trazer a minha família porque as histórias negras do cotidiano negro poucas vezes a gente observa na literatura voltada para as infâncias. Eu escrevo sobre o cotidiano.”
“A leitura dos livros da Sonia é aconchego, parece que ela está ali, a presença dela ao nosso lado. Não é à toa que ela nomeia sua literarura como ‘negro-afetiva’”, destaca Ananda Luz.
E o que ainda Sonia ainda sonha aos 30 anos de carrreira? “Há um desejo de que as coisas se mantenham, que mais produções relacionadas ao protagonismo negro, livros nessa perspectiva negro-afetiva invadam o mercado e que não seja visto como exótico, mas que seja visto como uma literatura mesmo, que se pretende dialogar”, espera Sonia. “É dentro dessa perspectiva de uma mudança da sociedade para o fortalecimento das identidades negras para que a convivência seja harmoniosa e saudável.”
(texto Cristiane Rogerio)