O adeus a Jutta Bauer: nosso tributo à autora alemã que costurava sentimentos de crianças e adultos

12/09/2025

“Viram?” No grupo de Whatsapp do Blog Letrinhas, a pergunta veio acompanhada do link para uma notícia que ninguém esperava: Jutta Bauer faleceu. Como pode ser? Se ainda este ano vibramos com o tão esperado relançamento de Mamãe zangada (Companhia das Letrinhas, 2025)? Se estivemos em contato com Jutta, sempre tão disponível, havia tão pouco tempo? De acordo com o comunicado oficial de sua editora, o falecimento inesperado da autora foi causado por um choque anafilático após uma inesperada reação alérgica. 

Jutta Bauer - foto de Luz Marina Martínez

Jutta se foi aos 70 anos de idade. Mas, artista importantíssima que foi, dedicada a poeticamente costurar situações comuns da vida e os sentimentos de crianças e adultos diante delas, jamais nos deixará. Ela fez como poucas no mundo livros em que textos, imagens e design nos deram aconchego para conversas importantíssimas. Da vida. 

Um imaginário permanente, que ainda será compartilhado por muitas gerações.

A principal matéria-prima para as mais de 80 histórias publicadas pela autora foram sempre as emoções. O anjo da guarda do vovô (Companhia das Letrinhas, 2025), uma de suas obras mais icônicas, tornou-se uma das principais referências para estudo do livro ilustrado, pelo jogo perfeito entre palavra e imagem que cria uma terceira e sensível narrativa. Mamãe zangada, baseado na própria experiência da autora como mãe, explora com honestidade as ambivalências da maternidade. Enquanto a ovelha Selma nos mostra como a felicidade está ao nosso alcance nas pequenas coisas, em fazer mais daquilo que gostamos.

Ganhadora do Hans Christian Andersen, o prêmio mais relevante da literatura infantil mundial em 2010, Jutta deixou um bocado de si em suas obras. Nascida em 1955 nas proximidades de Volksdorf na Alemanha, formou-se na Universidade de Ciências Aplicadas de Design em Hamburgo. Com textos precisos, traços cheios de personalidade e uma capacidade de fazer o incrível com uma aparente simplicidade, Jutta diz muito com pouco. Disfarça a sofisticação de seu trabalho com um minimalismo que faz parecer fácil. É uma autora capaz de falar de temas difíceis e sentimentos complexos de uma forma tão natural que nos vemos de repente arrastados para águas profundas. 


LEIA MAIS: Fazer das emoções história: a arte de Jutta Bauer

Ilustração de mamae zangada


Passamos o dia de ontem conversando com autores brasileiros sobre esta profunda perda. Gentilmente, eles compartilharam conosco suas memórias com ela e seus livros. Quem teve o privilégio de conversar com Jutta ou a viu em sua visita ao Brasil, notou fácil seu amor pelo mundo. Não era somente nos livros que ela sonhava mundos para as infâncias. Uma passada rápida em sua conta no Instagram vemos sua forte participação no “Avós contra a extrema-direita”, movimento para proteger a democracia para as gerações futuras. A seguir, uma celebração à sua imensurável contribuição ao livro e à infância:

 

Ah, Jutta Bauer, como te agradecer por nos revelar o que o vovô não conta? Como te agradecer por passear com a gente pela grama que a Selma celebra e me fez chorar? Como te agradecer por costurar a gente, nossos pedaços espalhados por todo lado, e você junta nossas partes com tanta verdade, com tanta liberdade. Que seja de alívio e descanso seu profundo sono, que um anjo esteja por perto de nós enquanto ousamos criar como você nos ensinou.”, André Gravatá
A querida Jutta Bauer fazia livros sobre os sentimentos, e ela colocava sempre o jogo de palavra e imagem no meio desse sentimento. É fácil ver isso em Rainha das Cores (Cosac & Naify, 2003). Cada sentimento é uma cor que vai entrando no livro, vai modificando a rainha. É fácil ver isso em ‘Selma’ - eu lembro de ela ter me contado que Selma foi inspirada em uma entrevista que ela viu com uma camponesa, para quem a maior felicidade não era mudar de vida, mas era fazer mais o que ela gostava em sua própria vida. Jutta tem um sentimento de união com as coisas, com a vida. Quando ela esteve no Brasil, me contou que ‘Mamãe Zangada’ nasceu porque ela tinha, certa vez, dado uma bronca tão forte na filha dela que escreveu o livro para pedir desculpas. Achei muito bonito isso. Eu a vi no Brasil uma vez, e depois na Colômbia, participei de uma mesa junto com ela. Jutta era engraçada. Uma ‘alemãzona”, grandona, que parecia dar um pouco de medo, rs, mas no fundo era um doce. Quando ela se abria e começava a dar risada, era engraçado. No meu A Princesinha Medrosa, ela escreveu a quarta capa… que triste. Mas falar sobre ela sempre vai ser gostoso.”, Odilon Moraes

 

Uma grande referência, grande influência, uma autora das que eu mais admiro e que deixa um legado que nós temos sorte de poder acessar. Temos um certo costume de ficar setorizando alguns autores - um é mais poético, o outro trabalha mais o humor, o outro tem uma linguagem mais extravagante… E na minha visão, a Jutta consegue ter tudo isso. Selma (Ciranda na Escola, 2023; Cosac Naify, 2007), por exemplo, é um livro bem-humorado, irônico, poético e singelo. Ela consegue atingir uma profundidade na simplicidade, que é algo que eu busco demais. Ela trabalha o pequeno para falar do grande. É como se ela conseguisse extrair diamantes dentro de algo enorme. Ela pega só a essência e com isso faz a gente rir, chorar, refletir. Ela tem uma capacidade de ser muitas coisas ao mesmo tempo. E ela faz parecer fácil, mas é fruto de um trabalho de pesquisa muito intenso e muito profundo e também de uma essência pessoal. Sorte a nossa de poder acessar as obras de Jutta Bauer.”, Yuri de Francco

 


O primeiro livro que eu conheci da Jutta Bauer foi Mamãe Zangada. E ali eu já vi que havia uma coisa que me encantava e conversava muito comigo. Depois, eu a vi falando que aquilo surgiu de um acontecimento dela com as filhas. E eu vi como isso me tocava de muitas maneiras. Como livro, como as coisas que ela faz me encantam, enquanto leitora. Mas ao mesmo tempo, como as coisas que ela faz me encantam no fazer. Ela é alguém que eu admiro no fazer, porque ela consegue transformar vivências, coisas que se passam com ela, maneiras que ela vê o mundo, em histórias profundas, em histórias onde cabem muitas leituras, muitos leitores. Ao mesmo tempo, ela faz isso com poucas palavras e com as imagens. Ela consegue construir o profundo a partir do pouco, que eu acho que é uma das coisas mais fascinantes do livro ilustrado. E como a gente vê que ela está ali, em cada um dos livros dela. E como ela fica.”, Carolina Moreyra

 


Fico imensamente sentido. Jutta era uma grande referência no universo dos livros para a infância. Com leveza, trazia a vida em suas obras, unindo humor, as palavras exatas e o traço simples e preciso. Tudo muito bem elaborado, sempre alcançando com perfeição o pensamento do leitor. Recebo essa notícia e logo me vieram à mente A Rainha das Cores, Selma e O Anjo do Vovô. Que bom saber que livros como esses continuarão a construir reflexões e memórias nos leitores.”, André Neves

 


O traço de Jutta é muito expressivo e simples. Ela coloca só o que precisa ali e funciona perfeitamente. Essa síntese não é fácil de conseguir. Parece simples, mas na verdade não é. Os meus livros preferidos dela são O anjo da guarda do vovô, pensando na linguagem do livro ilustrado, e Selma, pensando naquele livro que você termina de ler e abraça e não quer soltar mais.”, Clara Gavilan

 


Me parece que Jutta Bauer sempre se divertia fazendo seus livros. Falava sobre a alma humana com humor e simplicidade. É uma das minhas autoras prediletas”, Renato Moriconi

 


Eu conheci Jutta Bauer, um privilégio que as viagens e os livros entregam. Entender as dores e a poesia que desenham a vida de artistas dedicados às crianças. A maravilha da obra de Jutta Bauer permanece tão presente como o corpo despedaçado da personagem que precisa se refazer. E se refaz porque ela confia em leitoras e leitores, na relação de diálogos entre traços e vazios que sua arte propõe. Ela estará sempre criando uma filosofia da imagem porque seus livros têm camadas de leitura em expansão, que entendem cada leitor como um parceiro de seus mergulhos e voos”, Roger Mello

 

A perda dela é muito triste. Jutta foi uma das autoras com as quais eu tive meus primeiros contatos com o livro ilustrado, sem nem entender ou saber sobre os conceitos de livro ilustrado com O anjo da guarda do vovô. Eu lembro que eu comprei esse livro bem na época da Cosac & Naify e fiquei apaixonado. Lia, lia e lia! E ela tem também essa coisa do traço. Ela vem dessa geração de autores com um traço bem cartunesco, que conversa muito com o Quino [autor de Mafalda]. E aí faz muito sentido pra mim também. Selma também é um dos meus livros predilatos da vida. Jutta deixa esse legado lindo para o livro ilustrado, com todas as suas obras. Mas entre todas, Selma e O anjo da guarda do vovô me marcaram demais. Plantaram aquela sementinha de como é bom conviver com os livros ilustrados e conhecer cada um deles." Rodrigo Andrade

Para nós, fica a missão que os livros de Jutta Bauer nunca mais deixem de circular por aqui pois, com eles, ficamos melhores. 


(Texto Cristiane Rogerio e Naíma Saleh)

 

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog