
Autores e ilustradores negros para conhecer e celebrar
De Emicida a Kiusam de Oliveira, de Chimamanda Ngozi Adichie a Otávio Junior: veja autores e ilustradores negros para apresentar às crianças
A possibilidade de exercer a existência. A frase assim, escrita de forma direta, pode nos evocar muitas coisas, muitas situações. Simples, tem fundamentos profundos, fala do direito à vida.
Na capa deste lançamento da Companhia das Letrinhas, um menino está dando um pulo de vitória, com a mãozinha para cima, para o alto, avante! Ele é forte, exibe sua ancestralidade na estampa da camiseta, nos seus cabelos e no seu sorriso. Sim, este é Kayodê, um menino que conhece a origem do seu nome “significa ‘caçador de alegria’ em iorubá”, sabe que é cercado de pessoas que o amam e tem a mãe e sua melhor amiga, Tayó, como duas mulheres especiais com quem ele aprende muito e pode conversar. Nós o conhecemos em 2021, em Tayó em Quadrinhos (Companhia das Letrinhas, 2021), livro de Kiusam de Oliveira e Amora Moreira, onde ele era o amigo com quem a menina vivia questionamentos e cotidianos. Agora chega Kayodê em Quadrinhos (Companhia das Letrinhas, 2025), das mesmas autoras, com formato também de uma tirinha por página e muitos e muitos fios de conversas para puxar com as crianças.
Ao longo da obra, vemos Kayodê falando de sua ancestralidade africana e que sabe ter em sua cabeça uma honrada coroa. Também discute com a amiga sobre penteados, samba, futebol, religiosidade. E são nessas conversas-de-fortalecer que ele consegue argumento para enfrentar as outras mais difíceis, como os apelidos maldosos que as crianças lhes dão em referência à cor de pele, ou quando é rejeitado por famílias de crianças brancas na hora da quadrilha da festa junina, ou até a situação violenta de racismo quando nota que, ao sentar-se ao lado de uma moça no ônibus a primeira reação dela é segurar a bolsa mais firme.
Como esse livro nasce na voz de Kiusam de Oliveira, uma das mais importantes escritoras que cuidam da representatividades negras nas obras para crianças, o tom das narrativas é certeiro e amoroso. Pedagoga de formação, com experiência em várias áreas da escola e doutorado em educação e mestrado em psicologia, Kiusam não mede esforços para uma Literatura Negro-Brasileira do Encantamento Infantil e Juvenil, que ela cunhou e apelidou de Linebeiju. “Para mim, Kayodê me traz a memória da percepção de um menino negro, um aluno que eu tive. Ele estava com 9 anos e disse assim: ‘Professora, é muito ruim perceber que as pessoas desconfiam de mim’. ‘Como assim?’, eu perguntei. ‘Eu passo por algumas mulheres na calçada e elas logo vão segurar a bolsa. É porque têm medo que eu vou roubar”, conta Kiusam. “Um país em que uma criança negra, um menino, ele tem a exata noção do que é que as pessoas brancas pensam em relação a ele, sendo tão criança… para mim há uma uma questão seríssima aí”, alerta.
E há mesmo. O ativista Dudu Ribeiro, co-fundador e coordenador executivo da organização baiana Iniciativa Negra Por Uma Nova Política de Drogas, afirma que habitamos um “estado antinegro”, pois, sim, estamos estruturados para comprometer a vida de pessoas negras. O impacto é desde as infâncias. “O Estado brasileiro não tem conseguido: nós convivemos com alto índice de letalidade, sobretudo de homens negros. Passa por aí, então, a questão também em relação ao próprio exercício da paternidade, comprometida por um processo histórico de violência contra esses homens negros e também uma perseguição sistemática deles”, diz Dudu, que é historiador com especialização em Gestão Estratégica de Políticas Públicas e integrante da Rede de Observatórios da Segurança. Ele traça um cenário posto a estas crianças muito antes do nascimento e que se estende a algo bastante cruel. “A desumanização dos meninos negros é uma perseguição que atravessa sua vida numa lógica criminalizadora, que vai minando, muitas vezes, até a capacidade desta pessoa de compartilhar afetos”, sinaliza Dudu.
Os passos a serem dados são urgentes e devem começar o mais cedo possível. “Se a gente vai para Paulo Freire (um dos mais importantes educadores brasileiros), quando ele diz que a leitura do mundo precede a leitura das palavras, qual o destino que uma criança negra pode ter ou achar que vai ter, se ela percebe tão cedo, num momento tão crucial da vida dela, que a existência dela é uma existência de negação de outras pessoas, de outros olhares. Retiram dela a inocência de ser criança”, destaca Kiusam.
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Há muito o que fazer pois há muito o que pode ser feito. Há muito o que conversar e os livros, a literatura, as artes visuais estão prontas para serem lugares de ativar transformações. Basta de achar que falar de cabelo é bobagem, que revisar termos, palavras e se preparar para reparações históricas sejam perda de tempo. Se fizer diferença para um menino negro, é de uma vida que estamos falando. Todos os detalhes importam. Para Amora, autora das imagens, já desde a criação de Tayó em Quadrinhos, as características estéticas associadas ao conteúdo da história já eram premissas. “Quando ela chegou para mim, já era uma personagem existente (Amora refere-se ao livro O Black Power de Tayó, lançado pela Editora Peirópolis, em 2013). Então, o que eu busquei foi capturar sua essência e traduzir para os meus traços. Desde a primeira aparição dela, dos textos da Kiusam, ela é uma menina que fala muito sobre a questão estética, sobre a beleza dos traços, sobre a multiplicidade dos penteados dos cabelos”, comenta a ilustradora, que levou as questões para a criação de Kayodê. Amora conta que foi um pedido de Kiusam que ele fosse um menino meigo. “Também ali estou brincando muito com vários penteados diferentes, o que é muito interessante pensar também que, na grande parte das vezes, enquanto as meninas têm o seu cabelo alisado, os meninos negros têm o seu cabelo colocado na ‘máquina 1’, sabe? O cabelo não cresce, é sempre bem rasteirinho. Então é poder trazer o Kayodê também com essa vastidão de penteados, essa vaidade! É lindo porque mostra para as crianças que é possível.”
Kayodê não apenas mostra sua estrutura de autoestima de beleza: as tirinhas trazem situações em que o machismo poderia reinar, mas não ali. Tem o menino na aula de balé, tanto quando Tayó está com ele falando de futebol; existe o momento de lavar a louça tão presente como as crianças contando do seu interesse pelo MNU, o Movimento Negro Unificado, base do pensamento político das pessoas negras brasileiras contra todo o tipo de opressão. Kiusam e Amora produzem uma espécie de jogo entre a complexidade e a leveza, criando realmente a possibilidade que as conversas entre pessoas negras e não negras saiam da superficialidade. “Eu sabia que precisaria criar uma identidade estética que fosse leve, mas ao mesmo tempo também muito forte. Porque são duas narrativas que carregam questões muito profundas.” São destinatárias, em sua maioria, as crianças. “Essa leveza porque tem que ser voltada para uma lente da infância. O traço, as cores, a forma de eu compor os quadrinhos, vem dessa tentativa de equilibrar essa poesia e essa contundência. A gente tem que deixar que essas crianças se encantem e se reconheçam, mas os adultos também vão ler, e então vamos botar pontinhos de seriedade que o adulto vai captar”, conta Amora, que também tem sua arte no grafitti e se autodenomina “sampleadora visual”.
Assim como Amora, Dudu Ribeiro tem entendimento que a criança leitora não lê sozinha. “Uma obra literária tem um grande valor quando consegue tanto atingir as infâncias, tanto também os adultos, especialmente os cuidadores daquelas crianças. Nós estamos falando de um percurso que o racismo impôs para as famílias negras. Ainda estão entre as infâncias negras as maiores taxas de mortalidade por mortes evitáveis. As crianças negras precisam sobreviver a partir das carências nas políticas públicas, que as compromete já desde a chegada. Os meninos negros são rapidamente empurrados para uma lógica do cerceamento dos seus afetos e compartilhamento de brutalidade. Essa criança rapidamente também passa a ser considerada e observada pelo sistema de justiça criminal e pelas forças de segurança pública, iniciando muitas vezes um ritmo que vai acompanhar essa criança até o final da sua vida”, diz. “Não chega a muitas delas a possibilidade de exercer a existência.”
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A arte, que belo caminho para bons incentivos florescerem! “A cultura, a literatura, as artes e outras expressões artísticas cumprem diversos papéis dentro desse cenário, desde a denúncia das situações vindo relacionadas à violência racial no Brasil, mas, também, podendo encantar para o exercício dessas próprias linguagens. Para estas crianças, lugar também de construir, de fortalecer imaginários positivos sobre si, fortalecer possibilidades positivas de pensar o mundo, de sonhar o mundo, de se encantar com a humanidade e de reconhecer que o racismo, sim, vai lhe impor esse conjunto de violências, mas que não não é a sua única possibilidade”, destaca Dudu Ribeiro.
Em 2019, o Brasil se encantou pela esperança nos estudos, na leitura e em valores como o comunitarismo, apenas alguns dos pontos em destaque de Da minha janela (Companhia das Letrinhas, 2019), livro de Otávio Júnior e Vanina Starkoff, muito premiado e que levou até o Melhor Livro Infantil no Prêmio Jabuti em 2020. Tudo a partir de um menino que assistia à vida vivíssima diante de sua janela na sua favela. Assim como Kayodê, na literatura Otávio vem depois de grandes mulheres escritoras, como Inaldete Pinheiro (de Uma Aventura do Velho Baobá, Pequena Zahar, 2022), Heloisa Pires Lima (de Histórias da Preta, Companhia das Letrinhas, 1998), Sonia Rosa (de Meu Nome é Raquel Trindade, Pequena Zahar, 2023), Madu Costa (de Tudo É Mar, Brinque-Book, 2025) e, sim, Kiusam de Oliveira. “Ela é minha grande inspiração. Kiusam tem pavimentado o caminho de uma geração de educadores. É uma voz, mente e corpo importantíssimo para os movimentos negro e educacional brasileiro. Sou muito feliz de tê-la como amiga, mestra e conselheira. Suas obras enriquecem bibliotecas, salas de leituras, escolas, universidades, bibliotecas comunitárias. Suas obras dão um lindo sentido ao conhecimento humano”, diz o escritor carioca. “Quando desenvolvi o projeto Da minha janela, pensei em uma multiplicidade de olhares. Um mix de visões, sobretudo de meninos e meninas da favela. Um olhar sonhador, questionador, observador. Um olhar esperançoso. Um olhar realizador”, narra Otávio. “A Vanina quis fazer uma homenagem ao ‘menino Otávio’ e lindamente ilustrou a linda imagem de um menino negro, feliz ao contemplar as belezas da sua janela.”
Exercer a existência. O que Kiusam constrói é linguagem. Repertoria de linguagem leitores de todas as idades, tanto os que se sentem racializados pela sociedade e os que ainda estão mergulhados em sua própria branquitude. “Pode servir de ferramenta para o combate ao racismo, para o empoderamento de uma criança. É isso que eu tento trazer, a partir de palavras, situações, essa possibilidade de fortalecê-las, de aumento de repertório para as violências que elas passam no cotidiano”, diz a escritora.
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No período desta entrevista, corria a notícia da morte do artista Felipe Moraes, homem negro que levou um tiro de um segurança de um supermercado no qual ele tentou entrar com seu cachorro. O caso abalou Kiusam: Felipe tinha 29 anos e essa criança negra da qual estamos falando, e nos traz outra camada. “Uma mãe de uma criança preta tem que pensar que ela pode ter o filho dela somente até os 29 anos de idade. Então, ela vai enterrar o filho antes de ela morrer. Isso é um fato para uma mãe negra. E isso é a morte para uma mãe negra também. É uma mulher que cresceu morrendo por conta da sua identidade negra. Quando ele vai começando a entrar na adolescência, a tensão aumenta nas famílias negras, porque ele vai começar a querer sair sozinho. E aí é todo um ensinamento, ‘não faça movimentos bruscos’, ‘cuidado’ etc e tal”, observa Kiusam. Ela, como todos nós e como todos os estudos de literatura no mundo, entende que as histórias, o acesso ao livro e à leitura podem ser a oferta de sonhar novos mundos, como disse Dudu Ribeiro. “Fortalecer essas crianças. As crianças negras chegam muito despreparadas no espaço escolar em relação ao racismo, por exemplo. Ela chega despreparada. As crianças não negras, estão. Preparadas para fazer diferença entre crianças negras e não negras, pobres e ricas, cabelos lisos e cabelos crespos. As crianças brancas chegam treinadas pelos familiares a fazer diferença entre as crianças por cor da pele, tipo de cabelo, condição social, que usa, o que não usa, marca, tênis ou chinelo. E a criança negra, totalmente despreparada, a reação dela nunca é uma reação, no começo, de enfrentamento. É uma reação de choro, de desmonte diante da agressão e da violência.”
Kayodê, Tayó e dezenas de personagens negras que habitam com um pouco mais de espaço – ainda precisamos mais – as prateleiras de livros brasileiros chegam para letramento de todos nós, independentemente da idade. Até porque, estas crianças não têm que enfrentar tudo isso sozinhas. Na escola, nos espaços públicos, nas empresas, em casa, precisam de um adulto responsável e letrado racialmente para cuidar dela. Por isso também, Kiusam de Oliveira e Amora Moreira sonham que Kayodê em Quadrinhos alce voos altos. “Sonho que ele chegue nas escolas de uma forma geral, que os meninos pretos possam acessar essas histórias que Kayodê conta, que elas possam ser debatidas, e que eles consigam se fortalecer, assim como as meninas negras se fortalecem com o Tayó. Que os meninos negros consigam se abrir em grupos protegidos, com um adulto mediador e competente”, espera Kiusam. Com os dois livros, Amora aguarda que eles voem em companhia. “Que eles voem juntos, um complemento do outro, abordando questões específicas de cada um dos dois gêneros. Espero mesmo que meninos e meninas negras possam se ver com liberdade. Com direito também de imaginar, de brincar, de existir, sem pedir licença. Que essas famílias, essas escolas, esses professores, esses grupos de leitura, também se reconectem. E possam ser fortalecidos pelas narrativas que o livro traz. E também que crianças não negras tenham acesso a essas histórias, para compreenderem também desde cedo a importância do respeito, da diversidade e da justiça. Que ele voe muito levando o recado que o futuro é nosso e que ele só existe vivendo o hoje. Entendendo o que foi o passado é que a gente segue no futuro”, finaliza Amora.
Sempre para que se exerça o direito de existência de todas as infâncias.
(texto: Cristiane Rogerio)
De Emicida a Kiusam de Oliveira, de Chimamanda Ngozi Adichie a Otávio Junior: veja autores e ilustradores negros para apresentar às crianças
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