'A pequena violinista' de Jon Fosse apresenta às crianças a linguagem e o mistério próprios do autor

20/08/2025

Era uma vez uma menina, uma pequena violinista que,

ao erguer a mão em frente aos olhos, conseguia ver através

da mão, e se tentava ver uma coisa em especial ela conseguia,

nem sempre, mas com frequência.


Assim começa A pequena violinista (Pequena Zahar, 2025), o primeiro livro infantil publicado no Brasil de Jon Fosse, premiado autor norueguês vencedor do Nobel de Literatura em 2023. A história fala da jornada de uma menina em busca do pai. Ela o vê, através das mãos, sentado em uma pedra na orla, molhado e exausto. A menina, então, prepara seu violino e sai disposta a trazer o pai de volta para casa. Mas são vários os obstáculos que se revelam pelo caminho. Uma montanha se interpõe entre ela e o pai. Depois um pântano. E depois o próprio mar. Mas todas as vezes, a menina conseguiu seguir sua travessia fazendo aquilo que ela sabe fazer: tocar. Simplesmente tocar. 

 

Ilustração de 'A pequena violinista'


Com ares fabulescos, a obra  foi ilustrada pelo artista norueguês  Øyvind Torseter, que realizou um trabalho primoroso misturando desenhos e recortes de papel para criar um efeito parecido com os dioramas.  A tradução é de  Guilherme da Silva Braga, responsável por transpor para Português as demais obras de Fosse - entre elas Trilogia - Vigília, os sonhos de Olaf e Repouso (Companhia das Letras, 2024) e É a Ales (Companhia das Letras, 2023).

Fosse é um dos grandes nomes da literatura contemporânea e se tornou uma espécie de símbolo da Noruega. Nascido em 1959, diz que nunca havia pensado em se tornar autor na juventude apesar de ter escrito sua primeira novela aos 20 anos. 

Recebeu a  Ordre national du Mérite da França em 2007 e em 2023 foi ganhador do Nobel de Literatura. Transita entre diversos gêneros: romances, peças de teatro, poesias, ensaios, todos carregando uma assinatura toda sua. 

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As marcas que criaram um estilo próprio 

Ilustração de 'A pequena violinista'

Assim como  acontece nas obras adultas de Fosse, em A pequena violinista sua autoria é facilmente reconhecida. “Eu tinha lido todos os livros adultos, e foi curioso conhecer este infantil porque é muito fácil de ver as mesmas marcas de estilo que ele tem na obra adulta”, aponta o tradutor Guilherme da Silva Braga.

A linguagem poética, de frases longas encadeadas por vírgulas, que parecem arrastar o leitor pela mão sem que ele note como avança pelo texto. A natureza que extrapola o cenário e se coloca como personagem. As referências a passagens bíblicas - no caso de A pequena violinista, ela precisa atravessar o mar e quando começa a tocar o violino, as águas se abrem tal qual aconteceu com Moisés na fuga do Egito dos hebreus. E, claro: a música, que tem uma conexão íntima com Fosse. 

O autor já declarou que só escreve porque nunca foi um músico tão bom. Ele tocou guitarra e também violino quando era mais jovem, mas em parte por não se considerar tão promissor, passou à escrita. “Passei mais ou menos diretamente de estar envolvido com a música para estar envolvido com a escrita. Na verdade, parei completamente de tocar e ouvir música e comecei a escrever. Tentei criar uma escrita  a partir do que eu vivenciava quando tocava”, declarou o autor em seu discurso quando recebeu o Nobel de Literatura em 2023. O prêmio foi concedido a ele por suas “peças inovadoras e prosa que dá voz ao indizível”. Esse ‘indizível’ se materializa na poética tão própria de sua escrita, desenhando imagens poderosas e criando uma atmosfera embebida na mística, que evoca experiências transcendentais.

 


“Se algo pode ser dito de forma simples, basta dizer. Você não precisa escrever uma novela ou um poema.” Jon Fosse, em entrevista ao Prêmio Nobel, em 2023

 


Em A pequena violinista, tocar o violino é a resposta para transpor os desafios que se apresentam no percurso. A música salva. Enquanto o instrumento, que entra e sai da caixa a cada percalço que se apresenta, é quase uma extensão da menina, um poder que ela evoca dentro de si mesma, ao simplesmente tocar. Não é algo que se possa explicar.

 

Um autor em busca

Ilustração de 'A pequena violinista'


No livro, o pai, um náufrago molhado e exausto, se torna objeto da busca da menina. Em Trilogia, a narrativa se desenrola em torno de um casal, Asle e Alida, que procura um lugar para dar à luz ao filho - uma referência bíblica clara a Maria e José, a Sagrada Família. Para Camila Berto, editora da Companhia das Letras responsável pelos livros adultos de Fosse, essa busca por algo ou alguém  é um tema recorrente na obra do autor, assim como as referências bíblicas, quase sempre presentes de forma mais ou menos direta. “É um autor com um repertório que vai além do livro em si”, comenta a editora.

Fosse se considerava ateu na juventude e se converteu ao catolicismo em 2013, uma escolha pouco óbvia na Noruega, em que a maioria da população é luterana, e que se consolidou após uma experiência pessoal que o autor considerou “uma revelação”. Como escritor, chegou a atuar como consultor de uma tradução norueguesa da Bíblia em 2011.

Camila destaca também a figura do homem no mar como um símbolo presente nas obras do autor, assim como as recorrentes trocas de cenário, em que o uso da vírgula acontece de forma muito específica, encadenando acontecimentos. “Para mim, o que fica de todos os livros dele é essa coisa meio onírica, que te deixa sem saber onde está. E ele faz isso de uma forma fascinante, porque não é algo abrupto, parece realmente que você é transportado nesse espaço-tempo”.

 

Uma linguagem permeável ao não-dito

Fosse escreve em uma língua chamada Nynorsk (que significa ‘novo norueguês’) e que se estima ser falada apenas por 10 a 15% da população. “É uma variante oficial, não é um dialeto. Mas é uma língua historicamente associada ao campo, uma linguagem pastoral, de pessoas mais simples e próximas da natureza, embora haja muita literatura contemporânea produzida nesse idioma”, explica Guilherme.. 

Já o Bokmål, falado por 85 a 90% da população, é visto por alguns, incluindo Fosse, como um idioma mais duro, uma ‘língua de burocratas’. Costuma ser o idioma usado em contextos mais formais como documentos, processos, notícias. “Já o Nynorsk é uma variante que tem menos associações e você pode usar de uma maneira mais neutra. Fosse considera que é uma língua com mais espaço aberto, para fazer coisas novas com as palavras, porque não traz tantas associações imediatas”, explica o tradutor. Ainda assim, ele explica que muitas vezes, os dois idiomas se misturam na produção literária contemporânea, com autores pincelando expressões em um ou outro idioma na busca por novos sentidos e efeitos. 


“O Nynorsk é muito próximo ao meu dialeto. Eu consigo escutar a voz da minha avó falando em  Nynorsk , mas é quase impossível ouvi-la em Bokmål”, Jon Fosse


“Outra característica marcante do texto de Fosse é o que eu chamo de ‘quase repetição’. Porque não é uma repetição exata. Ele faz esse tipo de construção em repete a descrição dos movimentos que tem esse efeito de uma prosa meio hipnótica”, aponta o autor. Esse recurso está presente em A pequena violinista:


Já no pátio, a pequena violinista parou e

ergueu a mão em frente aos olhos, olhou para

o norte, mas não viu pai nenhum, se virou

e olhou para o sul, e não viu pai nenhum, e

se virou e olhou para o leste, e lá também

não havia pai nenhum. Por fim a pequena

violinista se virou com a mão em frente aos

olhos e olhou para o oeste, e assim pôde ver

o pai sentado em uma pedra na orla.


O próprio Fosse credita à música essas repetições presentes em seu texto, como uma tentativa de recriar a experiência dos sons, a atmosfera das canções que o encantavam. “Para ele, é como se as coisas passassem a existir de outra forma na presença da música”, comenta Guilherme. Mas é na experiência das pausas, no silêncio, que o autor encontra a oportunidade de dizer muito. 

 


A coisa mais importante na vida não pode ser dita, apenas escrita, para distorcer um famoso ditado de Jacques Derrida. Então, tento dar palavras a uma fala silenciosa. E quando eu escrevia teatro, eu podia usar a fala silenciosa, as pessoas silenciosas, de uma maneira totalmente diferente da prosa e da poesia. Tudo o que eu precisava fazer era escrever a palavra pausa, e a fala silenciosa estava lá. E no meu drama, a palavra pausa é, sem dúvida, a palavra mais importante e mais usada – pausa longa, pausa curta ou simplesmente pausa. Nessas pausas, pode haver tanto, ou tão pouco. Esse algo não pode ser dito, esse algo não quer ser dito, ou é melhor, que pode ser dito sem dizer nada.” Jon Fosse

 

 

O tradutor destaca ainda que apesar dos textos do autor serem considerados complexos, Fosse usa um vocabulário muito simples também nos livros adultos. “São palavras comuns e muito concretas na maioria do tempo. Não há grandes abstrações”, explica.

Para Camila, a experiência de ler  Fosse é “recompensadora em todas as suas obras”: “É um autor com muita coerência estética,  temática, que tem um projeto literário sólido. Sempre escreve com o mesmo talento, não importa o público.O infantil é um caminho para começar a entender esse universo todo de Fosse”, conclui a editora. 

Assim como a pequena violinista simplesmente tocava, Fosse escreve. Simplesmente escreve. 

E se faz ler com ritmo, com silêncio, despertando no leitor uma espécie de devoção ao próprio texto.


(texto: Naíma Saleh)

 

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