'Tulipa', de Paula Schiavon, aproxima a infância, a arte e a loucura com beleza

25/08/2025

Não é simples definir sobre o que trata Tulipa (Pequena Zahar, 2025), novo livro de Paula Schiavon, o segundo escrito e ilustrado por ela. Parece que a cada leitura, um algo mais vai se revelando. São muitas camadas, sobrepostas com delicadeza, como as pinceladas que dão vida à história e criam uma atmosfera meio onírica e cheia de detalhes a serem revelados. Tulipa é assim… um livro com um certo mistério.

 

Ilustração de 'Tulipa', de Paula Schiavon

 

Na história, Tulipa é o nome da melhor amiga de Júlia. Elas passam os verões juntas, brincam de rainhas e fazem do quintal seu grande reino. Sim, poderíamos dizer que Tulipa é um livro sobre amizade ou sobre essa capacidade de fantasiar própria da infância ou sobre o crescimento, que faz deixar algumas ilusões para trás - ou apenas adormecidas. Mas, na história, é no quarto azul, que fica nos fundos do quintal, onde as preciosidades estão escondidas. É lá que o tio de Júlia mora. Um tio que brinca com ela de ser rei.  Um tio que se conecta com a menina de uma forma intensa e mágica. Também poderíamos dizer que Tulipa é sobre relações profundas que às vezes as crianças estabelecem com outros além dos pais, quando escolhem um outro adulto para ser sua referência. 

Mas há ainda algo além. O tio de Júlia é alguém fora da norma. Um alguém que se comunica de forma diferente, com uma linguagem que não se aferra às palavras. Uma linguagem que ele compartilha com Júlia, nas miudezas que eles colecionam, nos desenhos das paredes, no reino que inventam, onde eles brincam e são livres. Uma linguagem que nasce do desaprender, de se voltar para o estado mais puro de encanto com as pequenas coisas. 

Tulipa fala com afeto sobre essa linguagem que as crianças todas sabem, mas que vamos deixando para trás à medida que nos tornamos adultos. Uma linguagem do subjetivo, da invenção, da liberdade. Uma linguagem que não se entende dentro das normas, do racional, dos padrões. Uma linguagem compartilhada pelas crianças, pelos artistas e pelos loucos - termo, aliás,  que nem deveria mais ser usado. Hoje se diz neurodivergente para se referir a pessoas cujo cérebro funciona de forma diferente e que, por consequência, têm uma percepção diferente sobre o mundo, como aqueles diagnosticados com transtornos como esquizofrenia, bipolaridade e também pessoas no espectro autista, por exemplo.

A inspiração para escrever Tulipa ficou adormecida durante muitos anos e veio justamente de uma vivência da autora no Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), em Porto Alegre (RS). “Quando eu estudei Artes visuais, tinha uma colega que era coordenadora no hospital e criou uma oficina de criatividade nos moldes da médica Nise da Silveira (1905-1999). Pedi para estagiar ali e vivi um ano muito intenso”, conta a autora.

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A arte como oportunidade para expressar e dar sentido

Ilustração de 'Tulipa'

Nise da Silveira foi uma das primeiras figuras a levantar a bandeira da luta antimanicomial no Brasil, em uma época em que os limites entre hospitais psiquiátricos e prisões não eram tão claros. Na década de 1940, choques, lobotomia e outros procedimentos invasivos (e torturantes) eram normalizados, além de internações compulsórias e violentas. Médica psiquiatra, Nise se recusou a utilizar tais métodos e acabou sofrendo uma retaliação dos próprios médicos quando voltou ao serviço público no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, em 1944. Isso depois que ela própria vivenciou o cárcere e a tortura durante 15 meses, presa pela polícia do presidente Getúlio Vargas em 1934, e vivendo oito anos na clanestinidade após sua soltura. 

Nise se aprofundou nos estudos do psiquiatra e psicoterapeuta Carl Gustav Jung (1875-1961), que defendia a arte como um meio de expressão para pessoas esquizofrênicas, que não conseguiam se expressar verbalmente. Isso ajudou a quebrar o mito de que essas pessoas seriam incapazes de sentir, de se conectar, de se importar. Foi a partir dos estudos de Jung e de sua própria experiência na prisão que Nise formulou os princípios do trabalho com arteterapia para pacientes psiquiátricos.

“Lá no hospital era possível observar como a arte ia reorganizando essas pessoas internamente. Eu vi gente mudar a postura, conseguir verbalizar algumas coisas”, lembra a autora. “Cheguei ao hospital com uma ideia e aprendi na prática que a comunicação com eles não seria com palavras. A arte seria o caminho. Foi uma experiência que mudou minha cabeça sobre o que a gente acredita que é o normal, o certo,o caminho a ser seguido. Há outros mundos. Nestes alunos existe uma sabedoria interna muito grande na forma como eles vivem, aprendem a se relacionam”, conta a autora. 

Para criar o personagem do tio de Júlia, Paula costurou um pouco de muitos pacientes com quem conviveu no hospital. Mas houve um personagem em particular que a inspirou. Era um homem alto, de pés e mãos grandes, que queria experimentar novas formas de viver: ora não queria falar, ora só andava sem sapatos, ora dispensava as roupas. “Ele parecia um gigante e, ao mesmo tempo, era uma pessoa muito doce, muito amável. Ele dizia coisas que eu ia anotando em meu caderno e consegui perceber que ele realmente estava investigando o ser humano. Ele queria entender a vida, mas digamos que por meios não usuais”, reflete.

Além da experiência como estagiária no Hospital, Paula tem uma vivência familiar que também a inspirou a escrever. Assim como Júlia, ela também conviveu com um parente neurodivergente, sem que isso fosse nomeado. E se deu conta de que não se tratava de uma questão da família dela em especial, mas de muitas. A pessoa neurodivergente é aquela que como o tio de Júlia costuma ser deixada em um canto, levada para o quartinho dos fundos, ocupando a posição do esquisito.

 

 A loucura é um mistério. Tem seus sofrimentos, mas tem uma forma de experienciar o mundo. São pessoas que foram tentando outras formas de viver. É muito difícil para a gente que é cheio de regras aceitar que há, sim, outras formas possíveis” Paula Schiavon 

 

A autora também percebeu como sua filha mais nova, de 8 anos, convive com mais facilidade do que os adultos de sua família com outro parente neurodivergente. “A conexão entre eles é possível porque a infância traz essa outra lente para o mundo, em que estamos muito menos rígidos, muito menos consolidados. A gente dificulta os relacionamentos como quem não é como a gente. Mas existe uma possibilidade que o afeto e o amor trazem de comunicação entre as pessoas”, reflete Paula.

 

A linguagem do sensível arte, loucura e infância compartilham

Para Camila Feltre, doutora em artes e professora da pós O livro para a infância n'A Casa Tombada, essa linguagem que é retratada com tanta delicadeza em Tulipa “tem tudo a ver com procura das miudezas, com o que não está dado no mundo, com o apreço pelas delicadezas, pelas coisas sensíveis subjetivas, singulares”. Para ela, é essa forma de estar e se expressar no mundo que ainda não se enrijeceu, que permite a liberdade de inventar, que se torna capaz de unir artistas, crianças e pessoas neurodivergentes de alguma forma. E que se perde à medida em que nos tornamos adultos e vamos nos acostumando a regras, padrões, metas.

Camila conta que nas oficinas de criação de livro que realiza, às vezes é difícil para alguns adultos não racionalizar demais o processo e acessar essa linguagem de expressão mais espontânea, ao contrário das crianças, que têm bem menos amarras para experimentar, tentar e se divertir no fazer do livro. Para ela, um caminho para se conectar a essa linguagem de mais delicadezas e menos filtro é o das manualidades. “O fazer manual fica muito mais desperto na infância, quando tudo passa pelo tato, por sentir as coisas. Nas oficinas, quando as pessoas começam a mexer com os materiais, a recortar, desenhar, elas ativam aquelas lembranças de infância. E nesse momento de criação, muitas histórias guardadas da infância podem vir à tona”, comenta Camila. 

E aí é que vale se debruçar sobre outra camada importante do livro. Em determinado momento, Tulipa, que é a narradora, diz:  “Agora eu e a Júlia não somos mais da mesma idade.” Inicialmente, fica difícil entender o que aconteceu. Enquanto Júlia cresceu, Tulipa continuou no quartinho, com o tio. Mas as duas ainda se encontravam em sonhos… 

Não há uma única interpretação possível. Tulipa pode ser uma amiga imaginária. Mas como aponta a própria Paula, pode ser também a criança interior de Júlia. “A Tulipa é uma voz que não morre na gente, a criança que nunca deixamos de ser.  A gente vai crescendo e construindo camadas em cima dela, mas nossa criança continua ali”, defende a autora. Ela lembra de um comentário de um leitor que escreveu a ela sobre o livro: “A Tulipa é a flor que vive dentro de nós”. E não poderia haver uma forma melhor de explicar.

Ilustração de 'Tulipa'

O tio se conecta com Júlia porque brinca com ela. Brinca de verdade. Acredita no universo que eles criam juntos. Compartilha com Júlia os mistérios e as miudezas que só eles enxergam. E é por tudo isso que, mesmo depois de deixar para trás a infância, Júlia coroa o tio como Rei dos Reis. “Coroar para mim é uma forma de agradecer”, explica a autora, que se inspirou nos bordados do artista Arthur Bispo do Rosário (?-1989), que também teve diversas passagens por hospitais psiquiátricos, para ilustrar a capa de rei. 

Júlia agradece ao tio. Pela cumplicidade. Pela presença. Por partilhar com ela o mistério. 

Um mistério que às vezes esquecemos de ver mas que ainda habita em nós e em tudo o que nos rodeia. Às vezes nas miudezas espalhadas do chão, às vezes do lado de dentro.

(Texto Naíma Saleh)

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