
Escrever para adultos é também escrever para crianças?
Pensar na possibilidades de leitura que cada texto oferece e apostar no potencial de jovens leitores é o caminho para diminuir as distâncias entre as literaturas
A 23ª Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty (RJ) ficou marcada pela poesia e pelo humor, tão característicos de Paulo Leminski, o homenageado desta edição. Mas também por encontros importantes que colocaram em pauta o acesso à literatura e também a democratização de espaços para escrever: precisamos pensar quem escreve e para quem escreve. O que faz sentido para cada realidade? Como a literatura pode ser universal, mas dialogar profundamente com experiências tão particulares?
A emoção marcou presença nos diversos encontros que reuniram autores que são a cara da nova literatura infantil, nos quais temas como ancestralidade, diversidade, memória e pertencimento deram o tom. Depois de um primeiro dia de evento com programação intensa, abaixo, você confere um resumo do que rolou no restante desta 23 edição.
O encontro entre Inaldete Pinheiro de Andrade, Waldete Tristão e Paty Wolff: um dos mais esperados desta edição
A Coleção Canoa, que oferece literatura de qualidade a preços acessíveis, foi tema do bate-papo Canoa navegando em Paraty. O encontro reuniu os autores Mari Bigio, que assina a primeira leva de livros da Coleção Canoa, Bianca Santana (de Quem limpa?, Companhia das Letrinhas, 2025), Claudia Flor D’Maria (de A pororoca, Brinque-Book, 2024), Rodrigo Andrade (de Cores, Companhia das Letrinhas, 2025; Formas, Companhia das Letrinhas, 2025 e Números, Companhia das Letrinhas, 2025), além de Vienno (de Jeguinho Tenório, Companhia das Letrinhas, 2024). A editora da Companhia das Letras, Gabriela Tonelli, foi quem mediou a conversa no Auditório Areal.Logo na abertura do encontro, Gabriela falou um pouco sobre a motivação da coleção e a escolha do nome: “Fizemos esse auto desafio lá na Editora, de produzir uma coleção em que se mantivesse a qualidade literária tanto do ponto de vista de texto quanto de imagem e que tivesse um preço mais acessível. O nome é uma brincadeira com esse tipo de acabamento com o grampo que se tem na lombada, que se chama canoa. E também porque a Companhia tem essa brincadeira com os meios de transporte logomarca. E canoa é uma embarcação que chega a vários lugares, muitos onde embarcações maiores não conseguem chegar. E esse é o objetivo dessa coleção”.
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A Batalha de Ilustradores, uma competição de ilustrações feitas na hora inspiradas em trechos de O bicho alfabeto (Companhia das Letrinhas, 2014), se confirmou como um dos grandes destaques da programação. Na sexta, o combate aconteceu entre Clara Gavilan (de Berço, balanço, colinho, neném, Brinque-Book, 2025) e Vienno, com leitura de André Gravatá (de Converseiro da natureza, Companhia das Letrinhas, 2025) na Casa Toda Poesia, um espaço aconchegante todo dedicado ao autor homenageado da Flip, o poeta Paulo Leminski. Para entrar ainda mais no clima dos poemas, Julio Brugnari, da equipe de comunicação e marketing, aderiu ao bigode à la Leminski, para delírio da plateia.
Clara Gavilan na Batalha de Ilustradores
O último evento no dia, na Livraria das Marés, reuniu Flávia Lins e Silva (das séries Diário de Pilar, Pequena Zahar, e Os Detetives do Prédio Azul, Pequena Zahar), Silvana Salerno (de Viagem pelas histórias da Amazônia: qual é o seu norte? - nova edição, Companhia das Letrinhas, 2025), e Estevão Azevedo (de O dia dê, Companhia da Letrinhas, 2023). Com a mediação de Ana Leme, do Movimento Literário, as conversas foram em torno da infância de cada autor e de como as memórias e brincadeiras desse período estão presentes em suas obras. Flávia, por exemplo, contou que brincava de detetive com os primos na casa do avô (“descobrimos que ele pintava o bigode!”) e foi dessa experiência que surgiu a série Detetives do Prédio Azul (publicada pela Pequena Zahar desde 2013).
O terceiro dia da programação começou com mais uma Batalha de Ilustradores na Casa Toda Poesia, no qual se enfrentaram Carol Fernandes e Rodrigo Andrade. A leitura dos trechos de O bicho alfabeto ficou ao encargo de Eva Potiguara (de Biguru, Companhia das Letrinhas, 2025), que foi responsável pela mediação. Carol arrancou um coro animado da plateia e Rodrigo fez todo mundo cair na risada, ao desenhar um cão triste para ilustrar os versos de Leminski:
“noite sem sono
o cachorro late
um sonho sem dono”
“É literalmente o cachorro do Leminski", brincou o autor e ilustrador.
Mais tarde, em Raízes que cruzam o oceano, um dos encontros mais esperados da programação aconteceu: Inaldete Pinheiro de Andrade (de Uma aventura do velho baobá, Pequena Zahar, 2022) e Paty Wolff (de Azul Haiti, Companhia das Letrinhas, 2025) conversaram sobre ancestralidade e deslocamentos forçados (tanto de pessoas escravizadas, no passado, quanto de refugiados, hoje em dia), com a mediação de Waldete Tristão na Central Flipinha. Inaldete é uma das grandes referências em literatura afro-brasileira, foi fundadora no MNU (Movimento Negro Unificado) no Recife, ainda nos anos 1970, e raramente participa de grandes eventos - por isso, sua presença era ainda mais aguardada.
Os livros para leitores um pouco mais crescidos, a partir dos 9 anos estiveram em pauta no encontro Escarlate em Paraty. Janaína Tokitaka, Keka Reis (da série O dia em que minha vida mudou, Escarlate) e Maria Camargo (de Criaturas, Escarlate, 2025) conversaram sobre as dificuldades e alegrias de escrever especificamente para esse público pré-adolescente. Logo no início, o próprio mediador, Caio Tozzi (de Super Ulisses, Escarlate, 2021) nomeou essa literatura como algo que “não é lá, nem cá”. “O que me emociona nessa faixa etária é que em um mesmo dia eles são as duas coisas: são crianças e adolescentes, eles ficam alternando de uma coisa para outra. Para quem escreve, essa crise é uma coisa maravilhosa”, declarou Keka, que falou ainda sobre o tensionamento natural dessa fase na relação entre os pais e as crianças. E Maria seguiu o embalo: “É uma fase em que se muda muito e mesmo que não seja ruim, é difícil”. Ela compartilhou que na escrita de Criaturas ela se conectou muito com seus filhos. O papo, seguido de sessão de autógrafos, rolou na Livraria das Marés.
O último evento do dia, Como e por que escrever para crianças hoje?, reuniu as autoras Sofia Mariutti e Marília Garcia (de Escolha uma palavra, Companhia das Letrinhas, 2025) na Livraria das Marés. Elas compartilharam um pouco sobre os processos criativos, refletindo sobre como a própria linguagem vai inspirando as narrativas, como palavras vão puxando outras palavras e despertando novos sentidos.
O último evento da edição, que costuma estar sempre entre os mais aguardados, foi o encontro entre Inaldete Andrade, Paola Torres (de Tuiupé e o maracá mágico, Companhia das Letrinhas, 2024), André Gravatá e Eva Potiguara, com mediação de Nina Rizzi (de A melhor mãe do mundo, Companhia das Letrinhas, 2022) que se debruçaram sobre questões envolvendo Afetos, memória e ancestralidade. No começo, a mediadora pediu que Eva Potiguara fizesse a abertura com uma canção de seu povo, a etnia Potiguara, do Pará, e essa foi a senha para que a conversa ampliasse as linguagens: o bate-papo sobre ancestralidade teve música, poesia, performance e participação da audiência, que saiu emocionada de um encontro que durou mais de uma hora e meia. André Gravatá fez um poema de improviso ao longo da conversa, que foi apresentando ao final da mesa:
“Já experimentei
vários tipos de barro,
mas hoje experimentei
várias formas de ancestralidade
Espichamos aqui a nossa voz
e deu mais de dois metros de fita
Êta ancestralidade bonita
Êta ancestralidade que enfrenta
Êta ancestralidade que dói
Tanta história espremida
Tanta macaxeira passada na arupemba
Tanta soneca no cemitério
Tanto cheiro
de vó
Haja braço para amar
um baobá
Nunca vou me esquecer
que cantei com sua orelha na mão
E agora um baobá entra de gaiato
pra terminar esta canção”
Pensar na possibilidades de leitura que cada texto oferece e apostar no potencial de jovens leitores é o caminho para diminuir as distâncias entre as literaturas
Primeiro dia encanta com reflexões sobre infância, humor e o sucesso da Batalha de Ilustradores na Casa Toda Poesia
Edição voltada ao público infantil lançada em 2014 com desenhos de Ziraldo, ganha espaço especial na feira que este anos homenageia o poeta Paulo Leminski