Enciclopédia negra para jovens: nada será como antes

13/08/2025

Pessoas. Nomes e sobrenomes. O que fizeram, o que sonharam, o que desejaram. O que conquistaram. É assim que o professor Flávio dos Santos Gomes iniciou a conversa exclusiva que o Blog Letrinhas teve com ele, Lília Moritz Schwarcz e Suzane Lopes, os três autores da Enciclopédia Negra Para Jovens Leitores (Companhia das Letrinhas, 2025), que começa a se espalhar pelo país histórias de mulheres e homens inspiradoras e inspiradores e suas lutas que são fundamento da história do Brasil. Depois do marco que foi a Enciclopédia Negra, lançada em 2021, com seus mais de 550 verbetes-biografias, esta versão chega ao selo Companhia das Letrinhas com a intenção de que esta conversa faça parte das rodas de conversas nas salas de aula. “Eu queria ter lido um livro desse quando eu estava bem jovem na escola pública”, diz Flavio, historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Como a gente tem o racismo e precisa lutar contra ele, é fundamental que a gente tenha ainda que sublinhar a importância de identificar, traduzir, disponibilizar para que esses personagens negros e negras continuem visíveis. Eles revelam não a história do negro ou dos negros no Brasil ou da escravidão ou do pós-emancipação, eles revelam a história do Brasil”, completa.

Capa de Enciclopédia Negra para Jovens

Capa de Enciclopédia negra para Jovens Leitores (Companhia das Letrinhas, 2025)

Na conversa com o Blog Letrinhas, a historiadora e antropóloga Lília Schwarcz  - professora da USP e da Universidade de Princeton - reitera a importância da edição de 2021 mas sonha outras expansões com esta nova obra. “Este é um projeto muito preocupado com a boa informação. Eu gostaria muito de imaginar para sala de aula, ou seja, que os professores e as professoras que têm tantos problemas na sua formação - porque, no Brasil, professores e professoras não são pagos pela formação, isso é um grande erro no nosso projeto educacional - esse livro pode ser um livro que vai dar muito vocabulário para os professores. Mas eu imagino também jovens lendo esses livros e criando as suas próprias enciclopédias. Ou seja, criando as suas próprias seleções, pensando em outras pessoas, outras outras figuras que lhes chamam à imaginação. Eu acho que essa é a utopia desse projeto”, diz. “Toda enciclopédia é um projeto projeto aberto. E a utopia de um projeto aberto é que sempre cabe mais”, completa. 

A ilustradora Suzane Lopes também se comove muito para falar do desafio que foi criar as imagens para o livro. Ela que já havia trabalhado com Lília em Óculos de Cor (Companhia das Letrinhas, 2022), viveu uma experiência única. “Participar da Enciclopédia foi um grande desafio para mim. Como artista, representar personagens tão importantes da história, especialmente aqueles que foram esquecidos ou apagados da nossa memória, foi uma responsabilidade enorme. Para mim, pessoalmente, esse trabalho significou um resgate imagético, uma forma de reconectar com essas histórias, revisitá-las e trazê-las de volta também para dentro da minha própria trajetória. É uma construção de resistência a partir da existência do outro”, conta. 


Outra edição, outras escolhas, outros desafios

Assim como a edição maior, o livro evidencia esforços históricos e hercúleos de dezenas de pessoas ao longo do século XX, impulsionadas por muitas ações coletivas como o Movimento Negro Unificado (MNU), a Enciclopédia Negra, publicada em 2021 pela Companhia das Letras com autoria de Flávio e Lília, mas também do artista plástico Jaime Lauriano, organizou estes percursos de estudo e definitivamente enterrou a maior das desculpas da branquitude: a falta de informações. 

Nesta versão para jovens leitores, parece que assistimos a uma celebração de encontros de personagens fascinantes de nossa história. Eles estão divididos em duplas, como se os autores tivessem colocados essas pessoas de mãos dadas, de forma que a leitura tem, além dos dados históricos, um tom poético e simbólico da luta da população negra brasileira. 

“Procuramos intersecionar marcadores da diferença como gênero, sexo, raça, aí todos eram negros, claro, região, ação e classe social. Isso quer dizer que, assim como a Enciclopédia Negra dos adultos, nós queríamos que tivessem pessoas de vários estados brasileiros; a gente podia ter mais mulheres do que homens, mas não teríamos mais homens que mulheres. E queríamos também pessoas que tivessem outras opções de gênero que não as binárias. Também queríamos trazer várias profissões, de ativistas, a cientistas, cantores, atores, cineastas, ou seja, a trazer para os jovens uma um leque muito grande de possibilidades”, explica Lília. 

Isso significa que podemos ler encontros como o de Inácio Catingueira (1854-C.1978) e Itamar Assumpção (1949-2003). No capítulo dedicado a eles, aprendemos que Inácio pode ser considerado o avô do rap por suas histórias relatadas na Paraíba. “Reza a lenda que teria conseguido a própria alforria depois de vencer – entre versos e rimas improvidados – uma peleja de repentistas em Patos, na Paraíba, que durou oito dias”, narram os autores no livro. Já Itamar é presença inesquecível na cena artística de São Paulo. “As obras de Itamar se transformariam em referência para a chamada Vanguarda Paulistana, movimento cultural dos anos 1970 e 1980, em que se destacam as produções independentes do músico, todas de cunho experimental.”

A obra junta também duas escritoras negras: Maria Firmina dos Reis (1822-1917) e Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Vidas em tempos diferentes, ambas fizeram da experiência temas fundamentais de seus livros. De São Luís do Maranhão, Maria Firmina publicou em 1859 seu romance Úrsula, “que narra uma situação violenta que incentiva a abolição da escravidão (que só ocorreria em 1888)”, conforme trecho do livro. Ela chegou a abrir uma escola mista e gratuita e, mesmo com sua rica produção literária, permaneceu esquecida durante muito tempo, mesmo processo de silenciamento de Carolina Maria de Jesus. Mineira de Sacramento (MG), em 1947 foi morar em São Paulo, onde ganhou a vida como trabalhadora doméstica. No ano seguinte engravidou e foi morar na favela do Canindé, onde criou os três filhos como catadora de papel. “Em 1955, começou a escrever um diário onde anotava suas reflexões. No ano de 1958, conheceu o repórter Audálio Dantas, que publicou alguns trechos do diáro na Folha da Noite. A repercussão foi imensa.”

Ilustração de Maria Firmina dos Reis

Maria Firmina dos Reis (1822-1917), a primeira romancista negra de toda a América Latina

Ilustração de Carolina de Jesus

Carolina de Jesus (1914-1977), combateu o racismo e se consagrou como um dos grandes nomes da literatura brasileira

Como a cronologia não foi um critério, é comovente ver nas mesmas páginas os heróis brasileiros politicamente fundamentais Zumbi dos Palmares (1655-1695) e Carlos Mariguella (1911-1969) e os artistas Benjamim de Oliveira (C.1870-1954) e Grande Otelo (1915-1993) e Aleijadinho (1730-1814) e Maria Auxiliadora da Silva (1935-1974) que, cada um à sua maneira, eleva a história da arte no Brasil.

A parceira das imagens

A baiana Suzane Lopes que, além de ilustradora é escritora e designer foi uma companhia fundamental para Lília e Flavio. “Ela foi tudo. Ele é co-autora como eu e a Lília, a luz desta enciclopédia é a Suzane, trabalho maravilhoso, fantástico, impactante”, diz Flávio, contando que o processo foi diferente da enciclopédia maior, em que as imagens foram produzidas junto com a pesquisa da escrita. “Esta a gente já tinha o que a gente queria, entregou e quando chegaram os desenhos, a arte, a leveza, a qualidade, a percepção, o detalhe, até eu – que brinco comigo mesmo – que sou alguém que fica só produzindo livro chato, acadêmicos (risos), fiquei super motivado a escrever mais livros didáticos que pudessem ter uma interlocução com artistas como a Suzane.”

 

Zumbi dos Palmares

Zumbi dos Palmares (1655-1695) , um ícone de resistência e coragem

Para Lília, Suzane trouxe cor, imaginação e conteúdo. “Ela é excepcional na figuração, excepcional no colorismo e excepcional na construção de paisagens, na construção de quadros visuais”, diz. “Com uma artista dessas, este livro vai trabalhar muito com políticas de autoorgulho e de autoestima que são muito importantes para essas populações que sofrem com esse racismo estrutural, mas mesmo assim, nunca pararam de criar, nunca pararam de inventar, nunca pararam de dar a de mostrar a importância que elas têm para o nosso projeto de de cidadania e para o nosso projeto de república ainda tão falho. É letramento racial para mim e é uma atitude de letramento racial para as pessoas brancas, como nós, não é, Cristiane, que durante muito tempo pensamos que o branco era uma não raça, que era uma raça neutra, quando sabemos que a branquitude é uma grande presença ausente. Nesse caso, ela é uma grande ausência presente, porque as biografias são de pessoas negras e são desenhadas, ilustradas pela grande artista que é a Suzane”. 

Para Suzane, participar desta obra foi tempo de uma pesquisa extensa e profunda. “Especialmente no caso de personagens que não têm registros visuais, como fotografias ou pinturas. Esses foram, sem dúvida, os mais complexos de representar. A partir do texto, eu ia tentando montar esse quebra-cabeça: quem era aquela pessoa, em que tempo viveu, quais poderiam ser os traços do seu rosto, suas roupas. Foi um exercício intenso de imaginação e sensibilidade, uma tentativa de equilibrar passado e futuro na construção dessas imagens. Algo que me tocou muito foi a decisão de representar esses personagens de forma altiva, digna e positiva — mesmo aqueles que sofreram apagamentos históricos e violências herdadas da escravidão. Era importante para mim transmitir força e presença”, conta a artista. Para a própria Suzane, o mergulho nas histórias impactou-a pessoalmente. “Como designer de formação, uma história que me pegou especialmente foi a do João Henrique de Lima Barreto — pai do Lima Barreto — que trabalhou nas oficinas tipográficas da Tribuna Liberal. Fiquei curiosa para entender mais sobre o ofício, as tipografias da época, e como esse trabalho se desenvolvia naquele contexto.”

 

Introdução comovente e presente no final

O texto que abre a Enciclopédia Negra para Jovens é carregado de informação, sim, mas repleto de afetividade. “Este é um projeto de vida e de esperança. Que possamos lembrar, e parar de propositadamente esquecer, os legados e as experiências das populações que foram trazidas da África com sua sabedoria e seus conhecimentos, suas religiões e práticas, suas comidas e sabores, sua ourivesaria, suas redes e relações e formas de afeto”, dizem os autores na Introdução. A última parte é uma linha do tempo, um convite que a leitora ou leitor possa localizar numa ordem cronológica os feitos destas pessoas e outros dados históricoa, num belíssimo “extra” retratado com o mesmo talento visual do livro todo. “Que ele circule, que provoque debates, diálogos, reflexões. E que a partir dele nasçam novas imagens e formas de ver o mundo. Uma enciclopédia, pra mim, é mais do que um registro — é um ponto de partida. Vejo esse livro como um convite ao conhecimento, uma porta para iniciar jornadas de descoberta, seja por um tema, por uma figura histórica, ou por uma curiosidade despertada ali, entre palavras e imagens. E sonho também que esse livro transforme realidades — a minha, a da minha comunidade, a de quem o tocar. Porque a esperança ganha força quando é partilhada e multiplicada”, completa Suzane Lopes. 

(texto: Cristiane Rogerio) 

 

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