
Livros curtos ou em capítulos: um passo importante na formação leitora
Livros curtos ou em capítulos são como tijolinhos, que vão criando a base para que a criança comece a compreender (e gostar!) de textos maiores
As histórias em quadrinhos fazem parte da infância de muita gente. Não é raro ouvir alguém que diz que “aprendeu a ler com a Turma da Mônica”. Ou que fazia coleção de gibis. Ou que recortava tirinhas para fazer capas de caderno. Mas quantas pessoas seguem lendo quadrinhos depois de adultas? Onde estão as histórias em quadrinhos quando se visita uma grande livraria? Se elas estão, costuma ser em alguma prateleira escondida. Em um canto de pouco prestígio, sem muitos chamarizes. Talvez em grandes centros e com o aumento da cultura geek isso seja diferente mas, no geral, não se dá tanto valor. Grande parte das histórias em quadrinhos fora do mainstream só podem ser adquiridas em feiras e eventos específicos da área - parece que não há espaço para a HQ no meio de romances, poemas, e outras formas “elevadas” de contar histórias…
Mesmo entre o público infantil e juvenil, à exceção de grandes sucessos de vendas como as séries de Dav Pilkey - Capitão Cueca (Companhia das Letrinhas), O Homem-Cão (Companhia das Letrinhas) e O Clube do Pepezinho (Companhia das Letrinhas), não parece que há uma gama tão variada de obras - ainda que elas existam! Luanda no Terreiro (Companhia das Letrinhas, 2025), de Marcelo D'Salete, é um exemplo de HQ que traz uma temática pouco abordada para crianças nesse formato: o preconceito religioso.
Luanda não imaginava o que precisaria enfrentar enquanto se preparava para a grande festa em Luanda no terreiro (Companhia das Letrinhas, 2025)
E na escola, apesar dos quadrinhos estarem presentes nas aulas de português - com tirinhas, cartuns e charges que seguem aparecendo em provas - as histórias ainda são vistas como um meio de treinar para textos mais longos, que exigem mais do leitor - e não um fim em si. Pouco se discute a complexidade da leitura visual que as HQs contemplam.
Mas… as histórias em quadrinhos não são literatura?
Não, não são. E isso é bom.
Para Érico Assis, tradutor de quadrinhos e autor da newsletter Vire a página, há dois pontos nebulosos quando se discute se HQ é literatura ou não. “Primeiro, parece que, quando eu digo que quadrinho não é literatura, estou dizendo que quadrinho não é leitura. É óbvio que é. Leitura não é privilégio da literatura. Além disso, assim como na literatura, você encontra nos quadrinhos leituras excelentes e leituras fraquíssimas”, explica Assis. O segundo diz respeito à associação hierarquizada que se faz entre a HQ, como uma mídia menor e mais nova em relação à literatura, que seria esse espaço de maior prestígio e tradição. “Entendo que foi uma estratégia que não deu certo, porque sempre deixou o quadrinho como subordinado. Prefiro a estratégia de legitimar os quadrinhos pelo que eles têm de próprio, não pela equiparação com outra mídia”, explica Érico.
Para Amma, que é jornalista de formação, autora, ilustradora, especialista em livro ilustrado para a infância e autora de quadrinhos, a grande questão é que as histórias em quadrinhos precisam ser vistas como uma linguagem autônoma.”HQ não é literatura - assim como o cinema e o teatro não são. Como linguagem autônoma, ela tem um sistema próprio, com uma gramática própria”. Para ela, essa compreensão é essencial para que ocorra um movimento importante de redirecionar as discussões sobre HQ a partir de uma perspectiva mais intrínseca. Na prática, isso quer dizer parar de comparar os quadrinhos a gêneros literários, mas, sim, olhar para os diferentes gêneros e possibilidades que são de HQ: tirinhas, cartuns, charge, mangás, graphic novel…
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As histórias em quadrinhos possuem elementos textuais e gráficos que as diferenciam de outras formas de trabalhar com texto e imagem, constituindo uma linguagem própria a ser decodificada pelo leitor. O elemento primordial é o próprio quadrinho, que dá nome à mídia. Cada quadrinho é chamado de vinheta e seu contorno, de requadro. E o espaço entre as vinhetas, por sua vez, é chamado de sarjeta/calha. “Dependendo de como o quadrinho estiver organizado, ele já vai revelar um pouco da história. Às vezes, quando você abre a página, vê tudo, mas não vê tudo. Você visualiza a história inteira, mas não entende a história inteira. Mesmo sendo mais fácil decodificar imagens do que texto, é preciso voltar e ler”, explica Amma, que assina dois livros na Companhia das Letrinhas (Amigas que se encontraram na história, volumes 1 e 2, ao lado de Angélica Kalil) e um pela Pequena Zahar (Astronauta, com Carol Fedatto). A leitura deve ser feita seguindo uma determinada sequência para fazer sentido, mas para ela “O quadrinista bom é o que quebra essa ordem”.
As HQs também lançam mão de vários outros elementos característicos, como onomatopéias, balões, imagens cinéticas (ou seja, que sinalizam movimento) e o recordatório, por vezes também chamado de legenda, que geralmente é uma caixa de texto que ajuda a situar a narrativa. Pode trazer, por exemplo, marcações temporais ( “Aconteceu há 2000 anos…”) ou falas do narrador.
“Não há muito como ensinar a decodificar os sentidos de cada elemento - isso é algo que se aprende lendo”, pontua Amma. Um balão de fala é diferente de um balão de sonho ou de pensamento (que tem forma de nuvem), que também é diferente de um balão em que o personagem cochicha (em que a linha é tracejada). Esse é o tipo de repertório que só se adquire a partir da leitura de histórias em quadrinhos.
A gente aprende primeiro lendo a imagem, antes do texto. As crianças que ainda não estão alfabetizadas às vezes compreendem melhor as imagens mesmo sem decodificar o texto”, Amma
Érico Assis ressalta que o nível de sofisticação da leitura não depende apenas do leitor, mas também da HQ. “Tem quadrinhos que vão exigir mais do leitor pelos recursos de linguagem que utilizam. Tem muitos quadrinhos de Bill Sienkiewicz (autor de HQs como Cavaleiro da Lua, Novos Mutantes e Elektra: Assassina todos da Marvel Comics), de Amanda Miranda (autora independente que produz obras que abordam temas como violência contra a mulher e racismo) ou de Alberto Breccia que exigem esforço do leitor pela linguagem. Outros exigem pela temática: ler Maus (Quadrinhos na Cia., 2005) [de Art Spiegelman] é diferente de ler Mônica, ler Marcello Quintanilha [quadrinista e escritor brasileiro] é diferente de ler O Homem-Cão. Isso também acontece na literatura, pois não existe só um tipo de literatura. Acontece no cinema, no teatro, na música”.
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Luanda no Terreiro (Companhia das Letrinhas, 2025), de Marcelo D'Salete
A ideia do uso de imagens em sequência, como acontece nos quadrinhos, não é nova. Pelo contrário: suas origens remontam às pinturas rupestres e aparecem também nos hieróglifos egípcios. Mas, hoje, mesmo chegando a patamares sofisticados de narrativa, tanto do ponto de vista de imagem quanto de texto, os quadrinhos ainda são erroneamente considerados como uma possibilidade de leitura “menor”.
E há um motivo para isso. Nos anos 1950, nos Estados Unidos, o macartismo [movimento de “caça às bruxas” que perseguiu comunistas e aliados] declarou guerra às histórias em quadrinhos, que foram associadas à delinquência juvenil. Com a criação de um Código dos Quadrinhos, que determinava o que era ou não aprovado pelo governo, houve uma inibição da criatividade e da diversidade nas HQs que se estendeu por décadas.
No Brasil, influenciados pelas diretrizes norte-americanas, os quadrinhos também foram associados a uma função deseducativa, considerados maus exemplos para crianças e jovens. “Pedagogos e o Instituto
Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) resistiram ao uso de HQs por crianças, alegando efeitos negativos como baixo desempenho escolar e aversão à leitura”, descreve Amma em uma de suas aulas sobre quadrinhos. Ela explica que esse movimento influenciou profundamente os editais de compras de livros didáticos no Brasil e que o próprio INEP chegou a publicar um estudo sobre as ações “deseducativas” nas HQs, como violência, personagens de má conduta, figuras femininas inconvenientes, estrangeirismos e gírias.
Érico concorda que “ainda existe um ranço grande com quadrinhos, ainda existe a pecha das “revistinhas”. Tem inclusive a iconoclastia, que tem séculos, e que vai tratar como menor qualquer desenho que acompanhe o texto”. Apesar de achar que ainda serão necessárias algumas décadas para que as HQs se tornem uma leitura mais aceita e reconhecida, ele reconhece que há avanços.
Quadrinhos não eram resenhados em jornal, junto a livros e filmes, quando eu era criança. Não era qualquer editora que publicava quadrinhos, e hoje são poucas as que não publicam. Tem mais de uma geração legitimando ler quadrinhos depois dos 20 anos, dos 30, dos 40, dos 50. Teve um movimento muito importante de inclusão das leitoras – veja só, metade da população mundial –, que eram tratadas com muito desprezo pelos quadrinhos no século passado”, Érico Assis
Amma destaca que além de facilitar a oferta de quadrinhos de mais gêneros além do humor, é preciso haver principalmente mais mediação de histórias em quadrinhos entre crianças e jovens. “Há um limbo entre a infância e a vida adulta. Todo mundo lê quadrinhos quando criança e depois para. Mas por quê?”. Está em nós levarmos essa conversa adiante.
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