Estreia da poeta Marília Garcia para as infâncias faz brotar poesia em nossas mãos

09/07/2025

Porta, maçã, arrepio. Se as palavras surgiram para nomear o mundo e favorecer a vida compartilhada, a poesia permite inversões nessa lógica: nela, o mundo recria as palavras e desdobra a língua comum em linguagens incomuns. A poesia permite chegar perto das coisas com abertura para perguntar o que mais elas podem ser. As crianças, vocês sabem, vivem fazendo isso. É essa expressão de infância que permeia Escolha uma palavra (Companhia das Letrinhas 2025), de Marília Garcia e Ligia Franchini (Companhia das Letrinhas, 2025). Um livro-poema no qual as histórias que as palavras contam ditam as cenas visuais, e as imagens provocam outros desdobramentos. Eis um “modo-criança” de recomeçar o mundo, desconfiando de suas direções únicas. 


“As crianças têm um olhar novo, elas vão repetindo falas e comportamentos para aprender, mas numa lógica própria. Essa possibilidade de descolar os discursos, refazer as coisas e tentar olhar de novo pela primeira vez: tudo isso pode ser uma lição para nós como coletivo.” – Marília Garcia, poeta

 

Ilustração de 'Escolha uma palavra'

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Estreia da premiada escritora Marília Garcia na literatura para as infâncias, este é um livro ilustrado composto em versos, em que palavras e imagens recriam mundos à medida em que se entrelaçam. Diz a escritora: “é um jogo com essa ideia da Linguística de que é a linguagem que inventa as coisas”. A ilustradora Ligia Franchini também descreve uma dinâmica lúdica: “o livro ilustrado permite uma operação mágica: um jogo entre texto, imagem e uma terceira interpretação, que é a do leitor.” O próprio objeto nos leva a embarcar nesse ritmo, pois o folheamos na vertical, ainda um design que nos surpreende e desloca nosso modo de ler. 

Escolha uma palavra acompanha uma família em momentos corriqueiros que vão se transformando em extraordinários com a chegada de novas palavras à cena. Juntos, eles fazem piquenique com pão de queijo e limonada, brincam de palavras-cruzadas, tomam chá de erva-doce e maracujá. 

Porém, a história é contada por protagonistas dos quais não vemos os rostos. Na ausência de expressão facial, a emoção se concentra em outros elementos, como os objetos, os planos abertos e fechados, as cores e outros dispositivos de contar por imagens. Além, é claro, das próprias palavras, com seus sentimentos capazes de inundar a página. Afinal, tem coisas que a gente diz que também são água: “lágrima”, por exemplo. 

E assim a história se abre em mistérios para o leitor desvendar, de preferência, numa leitura compartilhada em que cada um vai perceber um ponto diferente. De quem são as caligrafias no papel? Por que há uma festa de aniversário vazia?  São muitas as perguntas que Marília e Ligia propositalmente deixam para quem lê, que pode encontrar múltiplos caminhos para uma mesma questão. 


Palavras que levam a outros mundos


A ideia para escrever Escolha uma palavra, conta Marília, veio dos Experimentos de escrita (Writing experiments) da poeta estadunidense Bernadette Mayer, conhecida por explorar feitios inusitados da linguagem. A própria Marília traduziu o texto para a revista Grampo Canoa, em 2016. Nele, ela diz assim: "Escolha ao acaso uma palavra (um substantivo é fácil). Deixe a cabeça pensar livremente até que surjam ideias". O mote já está no começo do livro:


Escolha uma palavra,

uma palavra como Ibirapuera,

e faça brotar um parque 

dentro deste poema.


E, na dupla de páginas, vemos desenhados dois pés, um ramo de árvore, a ponta de uma manta no chão. Esse trecho nos chama para o vocábulo "Ibirapuera", que muitos de nós conhecemos no sentido geográfico, mas que nem todo mundo atenta quanto à sua origem indígena. A escolha de começar a pensar o livro apenas com substantivos é, na observação da autora do texto, “uma tentativa de ir nomeando o mundo”. Ou, para quem está em São Paulo principalmente, renomeando essa palavra que nos leva a um dos parques mais conhecidos da América do Sul. “Experimente dizer em voz alta: I-bi-ra-pu-e-ra. Em tupi-guarani, significa ‘árvores velhas’, porque antigamente a região do parque era uma área alagadiça e as árvores apodreciam”, diz a poeta no final do livro, contando como a ideia começou.

Quando o leitor ou leitora menos perceber, estará não só entre árvores, mas também em meio à memória coletiva, em que uma paisagem revela outra, em uma cenografia invisível. “Pensei no parque brotando dentro do poema; no parque eu poderia fazer um piquenique”, conta Marília. “Fui imaginando quais palavras poderiam construir esse dia que vai passando, sempre num campo semântico das coisas simples, que definem o mais básico da nossa vida – as plantas, a água, o sol, o frio, os bichos”. A sensação é que o livro está brotando em nossas mãos. 

No caso da história contada em imagens, esse comando acontece de maneira particular. Se o que dizemos é capaz de inventar mundos, a criação se desdobra também em registros visuais. “O livro agora é, de fato, colorido, ou quente, com texturas que surgem também das imagens, com uma narrativa paralela feita de imagens que vão alterando o texto”, comenta a escritora.


“As palavras se transformam no contato com a imagem e se alteram com o trabalho lindo da Ligia Franchini” – Marília Garcia, poeta


“A primeira coisa que me veio à mente quando li o texto da Marília foram as sensações suscitadas pelo poema”, relembra Ligia Franchini. Além de ilustradora e artista plástica, ela tem formação em cinema, influência que transparece na construção da sequência de imagens na perspectiva de uma lente subjetiva, que só vê por meio dos olhos das personagens. O ponto de vista também aponta para um procedimento típico dos livros ilustrados, a tensão entre o narrar objetivo e o narrar subjetivo, como descrevem as pesquisadoras Maria Nikolajeva e Carole Scott, em Livro ilustrado. Palavras e imagens (Cosac & Naify, 2011).

 

Ilustração de 'Escolha uma palavra'

 

“Senti o poema como um convite para passear, como se as palavras fossem palpáveis ou pudessem tocar o leitor com as mãos. Essas características, do sensorial e do autorreferente, criaram uma narrativa visual que pode ser também um convite à imersão no próprio objeto, transformando quem está do outro lado em personagem dentro das imagens”, conta Ligia. 


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Ser poeta, ser criança


“Há uma espécie de desautomatização que nos faz olhar de novo para as coisas simples e ordinárias”, conta a poeta, que é também performer – mais um ponto de seu interesse pelas possibilidades de encenar com palavras. Desde 20 poemas para o seu walkman (2007) até Expedição: nebulosa (Companhia das Letras, 2023), passando pelo premiado Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017 – Prêmio Oceanos 2018), a autora soma quase duas décadas como poeta publicada, além de diversas obras traduzidas – algumas em diálogo com as crianças. 

A poeta confessa que sempre teve vontade de escrever para as infâncias, só faltava uma ideia que pudesse funcionar. Então, enquanto escrevia  a coletânea de ensaios Pensar com as mãos (WMF Martins Fontes, 2025), anotou ali os primeiros versos de Escolha uma palavra.  “Tirei esses versos de dentro dele e passei a escrever pensando já na criança leitora”.


“O engraçado foi que não pensei em um poema como os que faço, mas sim num texto pensado para as infâncias! Achei que havia ali alguma coisa diferente.” – Marília Garcia, poeta


Marília compõe algumas cenas do novo livro como pistas de leitura. “Fui pensando no que gosto de fazer com minha filha – comer frutas, reparar nas árvores, tomar chá, conversar sobre livros que lemos. Por exemplo, a cena da baleia é uma referência ao livro que traduzi do Benji Davies, Leo e a baleia (Paz & Terra, 2014), mas também ao Baleia na banheira (Companhia das Letrinhas, 2020), da Susanne Strasser (tradução de Julia Bussius); ou então a cena da lágrima, que remete diretamente ao Pluft, o fantasminha, da Maria Clara Machado”, conta. 

Outros elementos também estão escondidos nas imagens. Objetos cotidianos voltam reencenados em outros contextos, feito a baleia que reaparece como esponja de banho, como bicho de pelúcia, e também como protagonista de um clássico – além de Moby Dick, de Herman Melville, há outras referências literárias, como A árvore generosa (Companhia das Letrinhas, 2017), de Shel Silverstein, Amanhã (Pequena Zahar, 2022), de Lúcia Hiratsuka, e Mãos (Companhia das Letrinhas, 2024), de Kiusam de Oliveira e Natália Gregorini. “Tentei trazer elementos afetivos e também jogos de escrita, sempre dentro de lugares familiares”, diz Ligia. “Em muitas das imagens existem pistas, objetos jogados, rabiscos, manchas e brinquedos que podem dizer coisas sobre o tempo e também sobre as personagens. Procurei lançar essas pistas, deixando a critério do leitor criar e brincar de ligar os pontos”.

 


“Procurar coisas escondidas é uma brincadeira praticamente unânime nas infâncias.” – Ligia Franchini, ilustradora

 

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A presença das palavras neste livro é mais que comunicação funcional ou organização social: elas estão constantemente fazendo coisas. Podem desejar – e conseguir – que alguém tenha um bom dia logo pela manhã, e até demonstrar sentimentos ou carregar sensações que se manifestam no corpo. 

Para a psicóloga Silvia Ambrosis Pinheiro Machado, em Canção de ninar brasileira: aproximações (EDUSP, 2018) “palavras alargam nossa experiência de tempo”. Antes mesmo de termos um corpo exterior, ainda na barriga de nossas mães, ouvimos do mundo os seus sons. Em seu livro, Silvia descreve as canções de ninar como “um dos primeiros objetos culturais a que somos expostos”; de acordo com esse pensamento, para muitas pessoas, as memórias mais antigas remeteriam a um poema sonoro. 

Um livro-poema como Escolha uma palavra pode colocar as crianças diante desse brinquedo infinito que é a palavra, que permite quantas repetições e recriações elas quiserem. Quando brincamos com a poesia podemos voltar a um estado de infância como de um bebê virando um objeto pelo avesso. Aperta, morde, experimenta. No fim da investigação, a criança, assim como o poeta, encontra não um objeto novo, mas novos jeitos de se relacionar com ele. “Se cultivadas desta forma, tanto a infância quanto a qualidade poética da vida se manifestam, é inevitável”, diz a ilustradora.


“O que é comum à infância e à poesia talvez comece com a atenção. A infância permanece em nós, mas o que talvez corra risco de se perder seja a atenção ao mundo, que é o motor da curiosidade.” – Ligia Franchini, ilustradora


Estar perto das crianças pode potencializar o cultivo da poesia. Marília pondera o impacto da maternidade e da experiência com a filha Rosa, de 7 anos, no processo de estreitar o diálogo com esse público. “Todos os dias aprendo com minha filha a olhar de novo para as coisas, não só por ter que responder às perguntas que ela faz (temos que elaborar respostas de todo tipo, como se fabrica um carro, o que é a morte, para que serve uma foice, por que 'palavra' se chama 'palavra'?), mas também por uma espécie de altruísmo; para poder conviver a gente precisa o tempo todo se colocar no lugar do outro”. 


(Texto: Renata Penzani)

 

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