Duas ou três coisas sobre Jonathan Franzen

13/06/2016

Por Martha Batalha

Jonathan Franzen, DeLand, Fla. Nov. 22, 2010.

Franzen escreveu três grandes romances -- As correções, Liberdade e Pureza. As correções é sobre a desintegração de uma família americana, a partir da doença do patriarca. Liberdade é sobre os altos e baixos de um casamento. Pureza, que sai agora no Brasil, é sobre uma jovem criada por mãe solteira, que busca a identidade do pai (e sobre muitas outras coisas -- integridade, privacidade, traição). Tramas à parte, os três livros são, na verdade, sobre a mesma coisa: as dificuldades de relacionamento, as influências do meio, as mudanças que os anos trazem. As metamorfoses do amor e os erros inevitáveis de cada pessoa.

O autor escreveu outros dois romances, The 27th City e Tremor (o primeiro ainda não foi publicado no Brasil). São seus trabalhos de estreia, esteticamente perfeitos e sucessos de crítica. Mas falta algo -- falta molho, falta Franzen. Ele só se tornou Franzen com As correções. Neste livro os parágrafos continuam impecáveis, mas há um jogo de cintura e um senso de humor que não vêm apenas do domínio da escrita, mas do fato de ele estar se expondo no livro, e se divertindo durante o processo. Tem muito amor em As correções. O livro foi escrito enquanto Franzen via a desintegração da própria família. O pai apagava aos poucos, vítima de Alzheimer.

Tremor e The 27th City não são irresistíveis como os últimos romances de Franzen, mas ajudam a entender o processo de formação de um escritor. O estilo de Franzen chega aos poucos -- aparece em nuances de The 27th City, está mais presente em Tremor e se consolida com As Correções.

A má notícia: Ele escreveu um famoso ensaio para a revista Harper´s chamado “Why Bother” [Para que se preocupar?], que deixa qualquer escritor preocupado. Convence o leitor de que a literatura está acabando, que a cultura de massa, a necessidade constante de estímulo e o tempo fragmentado impedem a produção e a leitura de grandes romances. E isso foi antes da contaminação do mundo por Google e Facebook.

A boa notícia: O ensaio foi publicado depois de Franzen escrever os dois primeiros romances (aqueles que foram sucesso apenas de crítica). Ele ainda não tinha formado uma conexão com seus leitores, não tinha entendido que literatura é também exposição pessoal, que era preciso “abandonar o senso de responsabilidade e aprender a escrever por diversão, e para entreter”.

Seu livro de ensaios Como ficar sozinho é uma declaração de amor aos livros e à leitura. É bom voltar a ele de tempos em tempos -- principalmente quando esta nossa cultura fragmentada -- tema recorrente no livro -- nos corta as horas fundamentais de silêncio dedicadas a um livro (qualquer livro, e apenas um livro). Como ficar sozinho confirma o que nós, leitores, sempre soubemos. Que a leitura é o segredo para nunca estar sozinho. Qualquer pessoa que lê (muitos livros, durante muitas horas) cria um mundo à parte, formado apenas pelo leitor e os autores.

Três iniciativas de Franzen que todo o escritor gostaria de ter feito e / ou deveria fazer:

  • Depois de se formar ele alugou um apartamento com a mulher, comprou quilos de arroz e de frango e se desligou do mundo. Escrevia oito horas por dia, lia cinco horas por noite.
  • Num momento de crise de escrita (forçando a barra para produzir um roteiro que sabia não ser bom), ele deixou seu estúdio na Filadélfia, pegou dinheiro emprestado e sublocou um loft em Nova York. No loft também não conseguiu escrever. Mas deu-se o direito de ler oito horas por dia, sem interrupções.
  • Franzen escreve de um quarto semiescuro, com protetores de ouvido e num computador sem conexão com a internet.

Em outro ensaio do livro Como ficar sozinho ele divide os escritores em dois grupos, Status e Contrato. No grupo de Status ficam os escritores que acreditam apenas no valor estético da obra. O livro se basta como obra de arte, independente de ter ou não leitores. No grupo de Contrato ficam os escritores que acreditam na conexão entre o livro e os leitores. Segundo ele, a ficção deve ser feita levando em conta estes leitores, já que o principal objetivo da literatura é formar uma comunidade entre escritores e leitores para combater a solidão. Leitura é prazer, e conectividade.

O autor empacou no meio de Liberdade. Achava que o livro era para ser uma coisa e estava se tornando outra, passou cinco anos tentando replicar no romance o modelo de As correções. Tinha também uma culpa imensa, por estar trancado em um quartinho fazendo ficção, com tanta coisa errada acontecendo no mundo. Decidiu abandonar o manuscrito e escrever uma reportagem para a New Yorker sobre questões ambientais na China. O artigo saiu, e não obteve o retorno de público ou a mudança do mundo desejados. Entendeu ali que era melhor ficar trancado em seu quartinho fazendo ficção. Era o que sabia fazer de melhor. Depois de mais quatro anos publicou Liberdade, um livro com uma trama forte o suficiente para fazer o leitor se afundar no texto, sem se importar com as distrações do mundo.

Pureza é como Liberdade, e As correções. Um livro típico do modelo Contrato, capaz de gerar uma forte conexão entre autor e leitor. Franzen construiu uma comunidade sólida, com leitores dispostos a doar muitas horas de seus dias em troca das quinhentas (ou setecentas) páginas de seus romances. Talvez o Franzen daquele ensaio da Harper [Para que se preocupar?] tenha razão. Talvez a literatura esteja se esvaindo do mundo. Talvez exista cada vez menos espaço para a leitura, porque os livros e a leitura são anticapitalistas em si -- demandam tempo e solidão, em vez de estímulos e consumo. Mas, se for verdade, Franzen é um excelente jogador neste time de escritores perdedores: seus romances são grandes armas de resistência.

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Martha Batalha nasceu em Recife em 1973, e cresceu no Rio de Janeiro. Jornalista com mestrado em literatura pela PUC-Rio e em Publishing pela NYU, trabalhou em jornais como O Globo e criou o selo Desiderata, hoje da Ediouro. Vive na Califórnia. Em abril, lançou pela Companhia das Letras seu primeiro livro, A vida invisível de Eurídice Gusmão.

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