I. ECOS LITERÁRIOS Polifonia e paixão Nosotros, por tradición, estamos acostumbrados a ver convivir Rousseau con el Santo Officio, y los pendones al emblema de la Virgen con El Capital. Alejo Carpentier, Los pasos perdidos Parece pouco plausível, mas Euclides da Cunha escreve Os sertões na contemporaneidade do grande romance realista brasileiro de Machado de Assis, que marca a maturidade deste e seus últimos anos de vida. Ambos foram participantes da cena literária simultaneamente pelo menos por uma década, como mostram as cartas que trocaram. E viriam a morrer com pequeno intervalo - Machado aos 69, em 1908; Euclides aos 43, em 1909. Ainda assim, não se pode imaginar obras mais dessemelhantes. Se, por um lado, o naturalismo igualmente já dera seus melhores frutos, por outro lado os primeiros sinais do modernismo, que faria sua rumorosa aparição em cena na Semana de Arte Moderna de 1922, não chegariam a alcançar Euclides em vida. Por tudo isso, costuma-se colocar Euclides no pré-modernismo, sem dúvida na falta de melhor categoria. Quando se considera que o outro escritor de prosa do mesmo período que sobressai da média é Lima Barreto, a heterogeneidade se acentua desconfortavelmente. Sobretudo naturalista e positivista, Euclides vai ser rejeitado pelo modernismo. A retórica do excesso, o registro grandíloquo, o tom altíssono só poderiam ser avessos ao espírito modernista. Acrescente-se a isso sua preocupação pelo uso de uma língua portuguesa castiça e até arcaizante, ao tempo em que Mário de Andrade ameaçava todo mundo com seu projeto de escrever uma Gramatiquinha da fala brasileira. No entanto, mal sabiam os modernistas que em Euclides contavam com um abridor de caminhos. As numerosas emendas a que submeteu as sucessivas edições de Os sertões, enquanto viveu, apontam para um progressivo abrasileiramento do discurso. No longo processo de emendar seu próprio texto, a prosódia vai aos poucos ganhando da ortoépia, esta sim portuguesa, mostrando que o ouvido do autor ia desautorizando sua sintaxe e, principalmente, sua colocação de pronomes, anterior. Ainda mais, o modernismo vai dar continuidade a algumas das preocupações de Euclides com os interiores do país e com a repulsa à macaqueação europeia nos focos populacionais litorâneos. Partilha igualmente com ele a reflexão sobre a especificidade das condições históricas do país, na medida em que já em Os sertões Euclides realizara um mapeamento de temas que se tornarão centrais na produção intelectual e artística do século XX, ao debruçar-se sobre o negro, o índio, os pobres, os sertanejos, a condição colonizada, a religiosidade popular, as insurreições, o subdesenvolvimento e a dependência. Aí fincam suas raízes não só o modernismo mas também o romance regionalista de 1930 e o nascimento das ciências sociais no país na década de 1940. Muitas dessas preocupações não eram, evidentemente, exclusivas de Euclides, mas comuns às elites ilustradas nas quais ele se integrava e das quais vai se destacar ao escrever Os sertões. E de muitas delas até se pode dizer que ele as aprendeu na escola, pois a marca do militar é muito forte nesse livro. Este militar cedo se licenciou do exército para nunca mais retornar, e sem dúvida, a partir de certo ponto, se sentia muito pouco à vontade na farda, como mostram suas cartas a amigos e familiares no período de decisão. Mas não se deve perder de vista que se trata do livro de um militar por formação, o que é fundamental para que se entendam tanto as origens de tais preocupações quanto a extraor dinária reviravolta de consciência causada pela Guerra de Canudos, testemunhada de corpo presente. O fato de Euclides ter feito seus estudos completos na Escola Militar do Rio de Janeiro, de onde saiu apto para se profissionalizar como engenheiro militar, pesa poderosamente em seus escritos. Essa era uma escola de ponta que, produ zindo vanguardas, constituiria um foco modernizador e teria atuação marcante na política brasileira, sobretudo na década em parte da qual Euclides foi aluno. Dentre os ex-alunos que se tomaram militares de profissão, destacam-se nomes ilustres como o do duque de Caxias, comandante vitorioso da guerra contra o Paraguai, durante o Segundo Reinado, bem como os dois primeiros presidentes da República, marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. Mas outros igualmente se notabilizaram em funções e papéis diferentes. André Rebouças se realizou como engenheiro e professor de engenharia, bem como em trabalhos empresariais durante o Império. Pereira Passos, o Haussmann do Rio de Janeiro, foi o responsável pela urbanização da capital, de que foi prefeito, no princípio do século XX. Benjamin Constant, de decisiva influência sobre seu discípulo Euclides, veio a ser ministro da Guerra da recém-proclamada República e em seguida ministro da Educação, bem como autor da primeira reforma de ensino republicana, de inspiração positivista. Cândido Mariano Rondon, idealizador do indigenismo brasileiro, fundou o primeiro Serviço de Proteção ao Índio, a que se dedicou durante toda a vida; também capitaneou a instalação das linhas de telégrafos que cingiram o país de sul a norte, através dos sertões. E ainda muitíssimos outros, que transformaram de várias maneiras os destinos do país. O positivismo se casava tão conaturalmente com o abolicionismo e o republicanismo que o lema da nova bandeira vai ser, como é até hoje, Ordem e Progresso. Benjamin Constant pregava que o soldado deveria ser antes de tudo um cidadão armado, com uma missão ao mesmo tempo civilizatória, humanitária e moral. Esses princípios viriam mais tarde a se institucionalizar na reforma da Escola Militar, de que foi autor, em 1900. Ora, tal concepção tinha sido uma criação da Revolução Francesa, só que ao contrário: eram os cidadãos que se tinham armado para propagar os ideais revolucionários pelo mundo, para civilizar o mundo ainda oprimido pelo Antigo Regime, e não para militarizá-lo. Estava pronto para ser usado - como de fato o foi, até para legitimar a chacina dos pobres em Canudos - o mito da Revolução Francesa à moda da casa. Um bando itinerante de crentes liderados por um pregador leigo, Antônio Conselheiro, depois de perseguido muitos anos por toda parte no interior dos estados do Nordeste, acaba por se refugiar numa fazenda abandonada, no fundo do sertão da Bahia, numa localidade chamada Canudos. Pequenos contingentes de tropas, enviados contra eles em mais de uma ocasião, foram rechaçados. Preparou-se então uma expedição maior, que passaria para a história como a terceira expedição, sob o comando do coronel Moreira César. Este militar se distinguira na repressão à Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, já no período republicano, tornando-se conhecido pelo apelido de Corta-pescoço. A expedição dirige se a Canudos e, no primeiro ataque, bate em retirada com pesadas perdas, inclusive a de seu comandante, numa debandada geral, deixando cair peças de roupa, mochilas, armas e munições. Foi o estopim para o alarma nacional, que começou com a depredação de quatro jornais monarquistas que ainda sobreviviam, um deles em São Paulo e três no Rio, continuou em atentados e resultou na convocação da quarta expedição. Esta reuniu tropas vindas de todos os estados do país sob o comando de nada menos que cinco generais e, a partir de certa altura, até um marechal, o ministro da Guerra, que se deslocou pessoalmente para lá. O exame dos documentos e da imprensa da época mostra como foi feita a montagem dessa reação desmedida. Arquitetou-se uma representação de Canudos como o foco de uma contrarrevolução monarquista internacional, com sede em Nova York, Paris e Buenos Aires. Essa conspiração contaria com ramificações de toda sorte em território brasileiro, navios ao largo, rede de apoio logístico e mesmo treinadores estrangeiros no local. É nesse clima que Euclides escreve dois artigos sobre o assunto, ambos intitulados "A nossa Vendeia", publicando-os no jornal O Estado de S. Paulo. O título foi tão feliz e oportuno que se alastrou, foi muito glosado e chegou a rotular provisoriamente Os sertões; mas, então, ele próprio já tinha aprendido, e duramente, que Canudos não era "a nossa Vendeia", como também fora induzido a crer. De fato, não calhava mal naquele momento a lembrança da contrarrevolução católica oriunda da aliança entre nobres e camponeses que durante tantos anos fustigara a Revolução Francesa por dentro, enquanto as monarquias europeias atacavam de fora. Entretanto, nos que publicou afora Os sertões, Contrastes e confrontos (1907), Perus versus Bolívia (1907) e À margem da história (1909), aqueles dois artigos não foram recolhidos. Tais livros são constituídos por coletâneas de artigos já publicados e pequenos estudos, de nível desigual, versan do tópicos variados como política, fronteiras, literatura, história, quadros sociais, perfis, temas amazonenses e outros afins, inclusive seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleito menos de um ano após a publicação de Os sertões. Talvez injustamente, a seu ver não acrescentavam muito a sua obra: amigos testemunharam seu aborrecimento por ser conhecido como o autor de um livro só. Após a publicação de "A nossa Vendeia" em O Estado de S. Paulo, Euclides é imediatamente contratado por aquele jornal para fazer a cober tura da guerra como enviado especial. Viaja para Canudos em companhia do ministro da Guerra, marechal Macedo Bittencourt, comissionado como seu adido. Dessa missão resultou a publicação de uma série de reportagens sobre a guerra, só muitos anos após sua morte recolhidas em livro, que seria o embrião de Os sertões. O colegial que escrevera quatro sonetos intitulados "Robespierre", "Danton", "Marat" e "Saint-Just", alimentado com ideias france sas na Escola Militar, vai finalmente viver em pleno o mito da Revolução Francesa à moda da casa. [...]