
A boneca de louça de Ana Maria Machado
A escritora, vencedora do Hans Christian Andersen, passeia pelas memórias de uma fotografia em preto e branco que revela sua primeira infância
A literatura aconteceu na vida de Ana Maria Machado.
Jornalista, professora, pintora e tradutora, ela é a grande autora homenageada como personalidade literária da 67ª edição do Prêmio Jabuti. Uma honraria digna de sua vasta e diversa trajetória literária. Nascida em uma família de professores, com um pai jornalista e mãe bibliotecária, a autora teve desde cedo os livros e histórias como presenças constantes. Mesmo a avó, que só aprendeu a ler depois de adulta, ficou marcada para a autora pelo grande repertório de narrativas orais, que a encantaram. As crônicas de Rubem Braga também foram inspiração para que Ana Maria começasse a escrever suas próprias histórias, como ela mesma conta na crônica que escreveu em homenagem ao centenário do escritor: “Gostava de ler desde que me entendia. Mas só lendo Rubem que nasceu em mim o desejo da escrita. A tentação de garimpar dentro da língua nossa, de todo dia, aqueles brilhos ocultos que ele sabia mostrar.”
Ana Maria logo começou a contar suas próprias histórias, se inspirando no dia a dia, contando histórias primeiro para os seus irmãos e mais tarde para os seus filhos. E percebeu que elas faziam sucesso além dos muros de sua própria casa - embora não pudesse adivinhar que um dia seus escritos ganhariam o mundo.
Hoje, ela assina mais de 100 obras lançadas no Brasil e traduzidas em mais de 20 idiomas, sendo considerada uma das autoras mais completas da atualidade. Apesar de ser conhecida de longuíssima data do público infantil, e ganhadora do Hans Christian Andersen em 2000, maior honraria da literatura infantil, ela não gosta de limitar sua obra. Também pudera: a autora transita entre romances, ensaios e até poesia, passando da crítica social ao humor, de releituras de clássicos como Homero em Alice e Ulisses (Alfaguara, 2012) a histórias de príncipes e princesas, como A princesa que escolhia (Companhia das Letrinhas, 2017). Assim como a protagonista dessa história, que se recusa a abrir mão do poder de decidir por si mesma e que descobre a vastidão do mundo pelas histórias, a autora também não quer se ver presa ou limitada a um ou outro rótulo ou obrigação. Pelo contrário: a intimidade que nutre com a palavra e a liberdade que tem em transitar com tanta propriedade entre diversos temas e gêneros só fortalecem as muitas formas como a autora se relaciona com o texto e a língua.
O que me leva a escrever e não a dançar, cantar, é o meu amor pela língua, pela palavra. E pela possibilidade de contar histórias que se relacionam com a realidade mas que também possam ser pensadas e imaginadas”, Ana Maria Machado em entrevista à Câmara Rio
Ana Maria estudou para ser professora de Português, carreira que cultivou durante muitos anos até ser presa durante o regime militar, em 1969. Partiu então para a Europa, onde começou a trabalhar como jornalista contribuindo com a BBC e com a revista Elle, além de atuar também como tradutora e dubladora de documentários. A experiência como expatriada nos anos de repressão ficou preservada em várias de suas obras, entre elas Tropical sol da liberdade (Alfaguara, 2012), um dos romances políticos mais relevantes da atualidade. Entre a memória e a ficção, acompanhamos o retorno da jornalista Maria Helena ao Brasil, na busca por recuperar o que os anos de ditadura e a vivência no exterior a privaram, em uma obra que aborda os desafios do exílio e da redemocratização em um diálogo de gerações.
Durante o exílio, Ana Maria atuou também como professora de Português na Universidade Sorbonne, em Paris. E em 1976, já de volta ao Brasil, publicou seu primeiro livro: Recado do nome (Companhia das Letras, 2013), a partir da tese elaborada com orientação de Roland Barthes (1915-1980) [escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês], como conclusão do doutorado em Linguística e Semiologia. O trabalho analisa a relação entre o nome próprio e a estruturação da narrativa na obra de Guimarães Rosa.
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Quando partiu para o exílio, Ana Maria já escrevia histórias infantis que eram publicadas pela revista Recreio, e que a partir de 1976 começaram a ser publicadas em livro. O primeiro grande sucesso veio com História meio ao contrário (Ática, 2019), que ganhou o Prêmio João de Barro em 1977.
Quando perguntada sobre o que a levou a escrever para crianças, a autora responde em seu site: “Eu já escrevia para adultos e sabia que "tinha jeito" para escrever. Conhecia muito bem a língua (era professora de português), estava começando a trabalhar numa tese de doutorado sobre Guimarães Rosa. Quer dizer, língua e literatura eram meu elemento. Por que não para crianças também? Não vi nenhum motivo para excluí-las de minha preocupação estética com o uso da linguagem, terreno onde sempre me movi. Então somei, ampliei, e incluí a criança nessas minhas vivências da arte da palavra.”
O Prêmio Casa de las Américas, de Cuba, o primeiro reconhecimento internacional que a autora recebeu, em 1980, ilustra bem como Ana Maria não coloca estabelece a distinção de públicos de uma forma tão determinante para fazer uma boa literatura . Na ocasião, ela inscreveu no prêmio, usando um pseudônimo, o texto "De olho nas penas”, de literatura infantil, que foi o escolhido entre todos os concorrentes que apresentaram textos para adultos. Mais tarde, em ela foi a primeira autora de livros infantis a ser eleita pela Academia Brasileira de Letras - da qual foi presidente entre 2011 e 2013.
É difícil pensar em um livro que seja o mais importante ou representativo da obra de Ana Maria Machado para o público infantil. Bisa bia e bisa Bel (Editora Moderna, 1981), História meio ao contrário… Isso sem falar nos recontos, como Jabuti sabido e macaco metido (Companhia das Letrinhas, 2016), no qual revisita histórias da tradição oral brasileira, ou a coleção Histórias à brasileira (Companhia das Letrinhas), ilustrada por Odilon Moraes.
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Ao lado de Yaci Moraes e Maria Eugênia da Silveira, Ana Maria Machado fundou em 1979 a primeira livraria do Brasil especializada em literatura infantil: a Malasartes, localizada no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro. Conhecida pelas icônicas prateleiras vermelhas, nas quais os títulos não eram distribuídos por idade, mas por gênero, mantendo as obras sempre ao alcance das crianças, a livraria marcou gerações, sendo frequentada por personalidades como Chico Buarque.
Em 2021, quando a Malasartes encerrou suas atividades após a baixa de vendas da pandemia, a autora celebrou os 45 anos de história da livraria em entrevista ao jornal O Globo, : “A Malasartes formou leitores e escritores, como Flávia Lins e Silva [autora das séries Diário de Pilar e Detetives do prédio azul] e Martha Batalha [autora de Liz sem medo (Escarlate, 2024)], apoiou professores no estímulo à leitura e durou quase meio século.”
O apoio a políticas públicas para fomentar a leitura também é uma marca da trajetória da autora. Especialmente considerando sua atuação na Academia Brasileira de Letras, onde abraçou com carinho programas sociais de expansão do acesso ao livro em comunidades carentes, apoiando por exemplo, a realização da FLUP, a Festa Literária das Periferias. Também foi destaque seu papel como vice-presidente do IBBY (International Board on Books for Young People), uma organização não-governamental que representa uma rede de pessoas e instituições comprometidas em aproximar os livros e as crianças.
Creio que o importante é que se escreva com verdade, fiel ao que se pensa, a uma visão de mundo consistente, a um domínio do ofício da escrita e ao afeto que se sente pela criança”, Ana Maria Machado em entrevista à Quatro cinco um
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