A onda que virou mar: literatura sul-coreana se consolida no Brasil

01/09/2025

A literatura coreana está nas vitrines de livrarias brasileiras, os grupos de K-pop lotam palcos de grandes casas de show no Rio e em São Paulo, os k-dramas estão nos principais streamings e autores e autoras sul-coreanos têm cada vez mais publicações em português. Heena Baek, que aqui chegou com o livro Balas mágicas (Companhia das Letrinhas, 2022), mesma história que rendeu para ela uma indicação ao Oscar na categoria curta de animação este ano, acaba de ter o seu quinto livro publicado no país: Pão de nuvem (Companhia das Letrinhas). E, ainda este ano, terá mais lançamentos da autora pelo mesmo selo: Como fazer balas mágicas (Companhia das Letrinhas, 2025), já em pré-venda.

Ilustração de 'Pão de nuvem'

Em Pão de nuvem (Companhia das Letrinhas, 2025) uma receita mágica da mamãe pode fazer todo mundo voar...

“A literatura ilustrada sul-coreana é um dos principais eixos de investimento na cultura do país. Esses livros lá têm peso e reconhecimento de uma obra de arte. Os profissionais são pensados como ‘artistas do livro’. Estamos sempre acompanhando essa produção tão rica e, além dos lançamentos desse ano, já temos mais um de Heena Baek contratado para o ano que vem”, confirma a editora da Companhia das Letrinhas, Gabriela Tonelli. 

A autora tem um jeito muito original de contar suas histórias. Formada em tecnologia da educação e animação de personagens, ela leva a técnica de stop-motion para os seus livros, criando bonecos, cenários, e fazendo as fotografias das narrativas visuais. Um trabalho único, muito reconhecido na Coreia do Sul e, agora, no Brasil, onde seus títulos já são adorados pelos pequenos leitores: além do Balas mágicas, também Picolé de lua (2023) e A mamãe do pintinho (2024). Em 2020, Heena Baek recebeu o prêmio Alma (Astrid Lindgren Memorial Award). 

Já Suzy Lee, considerada uma das primeiras sul-coreanas a ganhar destaque na literatura para a infância brasileira, também é reconhecida mundialmente por um trabalho singular com a narrativa visual. Na trilogia Onda (2008), Espelho (2009) e Sombra (2011), ela usa a dobra do do meio do livro como elemento da narrativa - dividindo a história em dois universos, ao mesmo tempo diferentes e complementares. Os três títulos se tornaram clássicos nas prateleiras das crianças brasileiras, já desde a década de 2000, quando a editora Cosac Naify deixou de existir. A “trilogia da margem”, como é nomeado por ela e por pesquisadores no mundo todo, abriu caminho para a tradução de outros livros da autora: Rio, o cão preto (2021), Linha (2022), Verão (2024), e Pássaro preto (2025), todos no selo da Letrinhas. Em 2022, Suzy Lee ganhou o prêmio Hans Christian Andersen na categoria ilustrador, considerado um nobel da literatura infantil. Enquanto outros de Baek e Lee eram traduzidos para cá, compôs também o catálogo Guarda-chuva Amarelo (Companhia das Letrinhas, 2022), do artista sul-coreano Ryu Jae-soo, um comovente livro somente com imagens, eleito um dos melhores livros ilustrados pelo New York Times. 

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Uma livraria para chamar de sua

“Uma livraria para quem é daqui. E para quem quer ser de um mundo onde migrar seja escolha ou vontade”. Assim descreve-se a Livraria Aigo, no bairro do Bom Retiro, centro da cidade de São Paulo. Aberta em julho de 2023, a Aigo é uma livraria especializada em histórias migrantes, localizada em um bairro que mistura muitas línguas - as placas de localização podem ser encontradas com traduções em coreano, japonês, hebraico ou espanhol. As prateleiras da livraria refletem essa diversidade: você pode encontrar a estante “Deslocados e Descendentes”, que destaca autores neste perfil, e “Origens”, dividida por continentes: África, Ásia, América Latina, Oriente Médio e Europa. Apesar de abraçar todas essas vozes, além do nome da livraria ser um termo coreano (Aigo é uma interjeição coreana que pode significar diferentes emoções) as três sócias, Agatha Kim, Paulina Cho e Yara Hwang, são de descendência coreana e todas cresceram no bairro, que não tinha uma livraria havia mais de 40 anos. 

“A Aigo não é uma livraria apenas asiática. Mas a nossa origem realmente faz com que essa referência fique forte para as pessoas”, comenta a livreira Yara Hwang. Ela reconhece que a onda coreana no Brasil foi muito importante para o negócio existir. “É um projeto que não tinha como acontecer em outro momento. Foi quando a hallyu já estava no Brasil. Antes, pensando em literatura asiática, tínhamos basicamente autores japoneses - e poucos. É muito recente essa procura por outras histórias, além do Japão. Até dez anos atrás todo mundo ligava asiático apenas ao japonês”. 

Entre os mais vendidos da livraria do Bom Retiro estão os livros coreanos. “É inegável que sai muitos livros coreanos. Tivemos recentemente a moda da ‘literatura de cura’, e a maioria é de autoria coreana”. A livreira percebe um interesse cada vez maior pela Coreia. “As pessoas estão indo um pouco mais profundo, tentando entender a cultura, vendo até os k-dramas que trazem questões históricas. Temos um livro aqui bem tradicional de contos coreanos (escrito no século XV) que, surpreendentemente, tem sido bastante procurado”, afirma Yara. 

Com a literatura infantil não é diferente. “Tem muita procura pela literatura infantil coreana”, garante Yara, que tem um grande interesse pelo gênero. “Fizemos questão de colocar os livros infantis em um espaço especial só para eles, com boa circulação para as crianças, onde elas podem ficar à vontade”. 

É preciso letramento 

Ilustração de 'Balas mágicas'

Balas mágicas (Companhia das Letrinhas, 2020) conta a história de Dong, uma menino que encontra um saquinho de baças mágicas que dão voz ao improvável

Um dos braços da Livraria Aigo propõe cursos online. Recentemente, foi ofertado um curso sobre a obra de Suzy Lee, com o pesquisador Luís Girão (USP), professor de Literatura Coreana pelo Departamento de Letras Orientais da USP, doutor e mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e um dos grandes responsáveis pelas traduções e permanência desta literatura infantil por aqui, especialmente com a empresa ARA Cultural. “Esse curso levou dois anos para acontecer e foi um sucesso. Em uma semana de divulgação já fechamos um público mínimo. Foram quatro aulas maravilhosas e já estamos pensando na realização de outros cursos sobre literatura infantil coreana”, planeja a livreira.

Além de todo o investimento da Coreia do Sul em um projeto de exportação e fortalecimento de sua cultura nos últimos anos, Yara concorda que autores e autoras da literatura infantil coreana chamam a atenção pela sua liberdade e ousadia artística. Ela lembra que as crianças coreanas desde muito pequenas entram em contato com as artes nas Hagwon, aulas extracurriculares. “Essa relação com a arte é muito forte na Coreia. Todas as crianças coreanas frequentam as Hagwon, que oferecem aulas de música, arte, ateliês, entre outras coisas.  E são bem exploratórias, as crianças entram em contato com materiais diversos. Você pode ver que o livro ilustrado coreano não é visto só como literatura infantil. Com Suzy Lee e Heena Baek, você pode ver que os livros viram exposições, animações, diferentes expressões artísticas”.

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75% dos brasileiros afirmam gostar muito da cultura coreana

O diretor do Centro Cultural Coreano no Brasil (CCCB), Cheul Hong Kim, que acompanha de perto a expansão desse fenômeno no país, diz que a absorção da cultura coreana pelos brasileiros é uma realidade. “Acredito que a cultura coreana já superou a fase de ser considerada como algo apenas de nicho. Ainda que o público jovem feminino seja maioria quando falamos de adoradores da cultura coreana, hoje ela já é desfrutada por pessoas de todas as idades e gêneros”. 

Segundo Kim, as formas de consumo também cresceram e se diversificaram. “Não temos apenas K-pop e K-dramas, mas também literatura, cinema, moda, beleza, gastronomia, webtoons (histórias em quadrinhos digitais), e até o interesse pelo aprendizado da língua coreana aumentou significativamente nos últimos anos”.

O Relatório Anual sobre o Estado da Onda Coreana no Exterior 2025, publicado pela KOFICE (Korean Foundation for International Cultural Exchange), diz que 75% dos brasileiros entrevistados afirmaram gostar ou gostar muito de conteúdos culturais coreanos. Além disso, a Coreia já ocupa a segunda posição em popularidade no país - atrás apenas dos Estados Unidos.

Outro levantamento, feito pela Ecglobal em fevereiro deste ano, mostrou que quase 90% dos entrevistados no Brasil assistem regularmente a K-dramas. Além disso, cerca de metade afirmou ter interesse em participar de eventos culturais ligados à Coreia. Essa popularidade se reflete no cotidiano do CCCB. “Como diretor do Centro Cultural Coreano, percebo claramente essa mudança de status da cultura coreana através do aumento expressivo - tanto em quantidade quanto em qualidade - das propostas de colaboração recebidas de instituições culturais brasileiras nos últimos um ou dois anos”. 

O diretor também observa de perto o sucesso da literatura, em especial a infantil e ilustrada, com títulos coreanos chegando ao mercado brasileiro. “Acredito que a literatura infantil coreana, assim como a literatura coreana em geral e a própria cultura coreana, continuará a ter uma recepção positiva duradoura no Brasil. Sua  popularidade já ultrapassa o nível de sucesso de conteúdos individuais e reflete uma imagem globalmente favorável. Além disso, vemos hoje uma crescente diversificação das áreas culturais experimentadas pelo público brasileiro”, afirma Kim, que destaca a demanda por narrativas diversas como um dos pontos importantes para a disseminação da cultura coreana. “Acredito que há uma busca mundial por alternativas às culturas centradas no Ocidente e de caráter predominantemente masculino”. 

Para Cheul Hong Kim, o intercâmbio entre Brasil e Coreia está apenas começando, e o público brasileiro continuará a descobrir novas formas de se conectar com a cultura do país asiático. Afinal, como mostra o crescimento dos últimos anos, a hallyu não é mais uma onda passageira, mas uma presença forte no imaginário cultural do Brasil.

(texto: Anna Luiza Guimarães)

 

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