"Vovó me esqueceu?" quando a criança vê uma forma de envelhecer

18/08/2025

“Vovó, fica comigo?”. É na capa, no título, à primeiríssima vista que esta obra nos enlaça. A avó desta criança viajou? A avó desta criança não gosta mais dela? A avó desta criança está indo embora? Por quê? Com estas dúvidas, abrimos o livro da escritora Iêda Carvalhêdo e da ilustradora Fran Matsumoto, que, feito duas artistas que nasceram para criar em dupla, nos comovem nesta história de amor entre um menino e sua avó. 

Ilustração de 'Vovó, fica comigo?'

Quando o menino não sabe por que a avó está tão diferente, ele começa a imaginar coisas... 

 

Mas o que aconteceu com eles? Vovó, Fica Comigo? (Brinque-book, 2025) narra uma porção de dúvidas que acometem um menino diante da avó que está mudada, distante, estranha. Como ele não consegue compreender a princípio, cria hipóteses: 


Vovó inventou de fazer uma viagem.

(...)

Não me vê mais. Não me ouve mais. Não me abraça mais. 

(...)

O que será que se passa na cabeça da vovó?


Enquanto lemos estas frases fortíssimas de Iêda, Fran nos abre as possibilidades de respostas. Elas construíram juntas o que ficaria no texto, o que iria para as imagens para, na hora em que lemos uma linguagem em relação à outra, a história se revele. Assim, o livro nos mostra como ambos os personagens estão, mas também o que sentem e o que podem estar sentindo, a partir de algum tipo de demência fazer parte do dia a dia desta família. A inspiração vem de dois momentos – separados por 50 anos – vividos por Iêda. A ideia veio de um acontecimento recente. “Foi um momento bastante difícil na minha vida em que veio esse tema. Minha mãe tinha tido um AVC, descobrimos que não teve tantas sequelas, aparentemente. Mas ela devia realmente estar com muito receio de nos esquecer e copiou o meu nome, o da minha irmã e do meu irmão e colocou debaixo do travesseiro. Isso mexeu muito comigo. Não chorava na frente dela, mas um dia, eu muito triste me tranquei no quarto e saiu o texto de uma vez. Saiu o texto inteiro de uma vez”, lembra a cearense Iêda, formada na área de letras e professora de literatura para jovens que, embora tenha escrito a vida toda, é seu primeiro livro publicado. “Eu pensei que, se estava difícil para mim, que era adulta, falar sobre isso, quão difícil não deveria ser para uma criança, né? Para uma criança sentir essa vó a deixando, sem ela conseguir entrar em contato.”

Para a psicóloga Simone Manzaro, psicóloga, especialista em gerontologia e autora de Alzheimer: identificar, cuidar, estimular (Portal do Envelhecimento, 2017) e de outras obras em ebooks, a forma com que a criança percebe e elabora o que está se passando em situações de demência diversas ou o próprio Mal de Alzheimer varia muito e por muitos fatores. Mas o vazio provocado pela falta de memória do adulto amado é comum. “Esquecer de algo é frustrante, mas ser esquecido é uma experiência dolorosa para todos, especialmente para crianças que ainda não compreendem o que está acontecendo. Na maioria das vezes, as crianças podem interpretar que os avós deixaram de amá-las, gerando sofrimento emocional e mudanças no comportamento. Por isso, é importante acolher as crianças e seus sentimentos”, alerta a psicóloga. 

De uma certa forma, a própria Iêda guarda esse sentimento da infância. Foi o segundo momento vivido e que também inspirou o livro. “Perdi minha avó paterna muito cedo. Uma avó que eu amava muito. Era um amor muito intenso, e essa frase: ‘vovó, fica comigo, fica’ foi o que eu senti quando ela foi embora”, diz Iêda citando que mesmo passando dos 60 anos de idade tem dificuldade de lidar com esta dor acontecida quando ela tinha 9. 

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A visualidade da história

Ilustração de 'Vovó, fica comigo?'

"A vovó está tão diferente!" Para as crianças que convivem com idosos e outras pessoas com doenças degenerativas, pode ser difícil entender o que se passsa.

 

Foi estudando a criação de livros que Iêda conheceu Fran. Depois de cursos n’A Casa Tombada – Centro de Estudo, Pesquisa e Experimentação em Arte, Educação e Linguagem (SP) –, onde fez uma oficina com os autores e pesquisadores Carolina Moreyra e Odilon Moraes e trouxe a história ao grupo pela primeira vez. Mais tarde, Iêda desenvolveu a forma de narrar em encontros com a orientação da pesquisadora Dani Gutfreund, no Lugar de Ler (SP), com outro grupo do qual Fran fazia parte. “Se não fosse a Fran, o livro não seria o que é. Com as imagens, ela acrescentou muitas camadas”, diz Iêda. Fran se apaixonou de cara pelo texto. “Fomos desenvolvendo o livro e eu fui mexendo no meu tempo livre. Fomos lapidando até que ano passado eu mostrei para a Elisa”, conta Fran referindo-se a Elisa Zanetti, editora na Brinque-book. “Iêda já tinha pensado nessa ideia de mostrar o que estava na realidade de um lado e mostrar o que estava na cabeça da avó, do outro. E a gente queria que a partir do momento em que a criança falasse ‘o que será que se passa na cabeça da vovó’ começasse a aparecer o que vemos na outra página”, explica Fran. Pensando em ritmo de narrativa e projeto gráfico, o livro tem três partes. A primeira é, de um lado, a avó quietinha sentada na poltrona, com uma expressão neutra, pensamento distante, e a criança ao lado tentando chamar a atenção; do outro lado da dupla de páginas, cenas que podem ser memórias do menino dentro de pequenos quadros, fazendo com o que o leitor de alguma maneira conheça o passado dos dois. Quando ele se faz a pergunta, o mistério de o que a avó, afinal, estaria pensando, as páginas da direita mudam de cor e sugerem uma imaginação, cenas um tom onírico em que está livre, brincando, talvez. Na terceira parte do livro, quando ele se pergunta “Vovó me esqueceu”, a angústia trazida pelo texto se entrelaça com outra narrativa na imagem, que sugere um outro tipo de encontro entre os dois. 

Todo esse ritmo também é marcado pelas frases curtas e pela delicada expressão do desenho de Fran desta avó. Pequenos detalhes no rosto, para onde ela olha e até um “micro sorriso” vão levando o leitor para determinadas interpretações. Há também um jogo com a dobra, o meio do livro em que a fluidez da arte com a imaginação se liberta do “real” de forma ainda mais profunda e comovente. 

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Uma marca para sempre

ilustração de 'Vovó, fica comigo?'

De um lado o que o menino vê. Do outro, o que se passa dentro da cabeça da avó

 

Nos últimos tempos, os estudos literários acadêmicos no Brasil têm adotado na classificação de livros deste tipo como “temas fraturantes”, pois trata de assuntos que podem ser conversados, elaborados, mas que são situações que não se regeneram simplesmente. “Os temas sensíveis, fraturantes, estão aí. E as crianças estão no mundo assim como os adultos. E assim, como os adultos, têm que lidar. Então não falar sobre isso é impensável. Toda questão é a forma: você não precisa trazer todas as respostas, ainda mais porque os adultos normalmente não têm”, avalia Elisa Zanetti. 

Para Simone Manzaro, é por isso também que não adianta tentar afastar as crianças da realidade. Até porque, tudo é educação para a vida. “Sempre oriento que as crianças sejam incluídas no convívio e no processo da doença, de uma forma gradual e acolhedora. Porém, é importante que os pais saibam dosar todas as informações com cuidado. A presença das crianças perto de seus entes queridos acometidos pela doença promove uma convivência sadia para ambos, e que irá refletir na vida adulta”, afirma a especialista. 

 

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Mas como fazer? “A condução das situações deve focar no presente, esclarecendo dúvidas e perguntas que surgem. As crianças muito pequeninas ainda não dispõe de recursos para compreender termos muitos complexos, elas apenas conseguem absorver o ambiente e as pessoas. Uma forma efetiva seria usar do lúdico e uma linguagem simples, como: 'a vovó está esquecendo um pouco das coisas e precisamos ajudá-la com carinho'. Já com crianças um pouco maiores, podemos ir dosando de acordo com o que elas entendem: 'o cérebro da vovó está um pouco cansado, e isso está fazendo com que ela esqueça algumas coisas, até de nós, e mude seu comportamento também, podendo ter algumas dificuldades para falar, encontrar coisas, e ficar brava, às vezes. Vamos precisar ajudá-la tudo bem?'. Quanto antes essas informações forem inseridas, de forma gradual e afetuosa, mais fácil será”, completa. E é aí que entra a arte, conversar com esses sentimentos que se demora a nomear.  

Para a editora Elisa, acima de tudo o livro fala sobre uma relação de amor. “O livro tem essa essência. Ele fala muito do amor entre essas duas pessoas principalmente. E tem a questão de que ela, a avó, mudou. Ela não é mais a mesma. Então tem esse sofrimento. Tem esse processo de compreensão disso”. A gente sabe que essas dores vão acontecendo e se curando em etapas. Com as crianças é a mesma coisa. “O que me encantou muito nessa obra é que ela traz um conforto. Mesmo. Você vai passar por isso e é um processo. Mas esse amor é mais forte do que tudo isso. A relação de vocês já está com você, já é sua. Já é do neto e já é da avó”, completa.

Focando nesta relação entre o menino e a avó, o livro traz outro aspecto mais amplo que é o do envelhecer. E que isso traz mudanças, assim como ele vê as mudanças nele mesmo, o seu próprio crescer. “Envelhecer faz parte de vida, e com muita sorte chegaremos lá. O envelhecimento deve ser visto como uma fase importante e natural da vida, onde as pessoas que chegam nessa fase carregam bagagens ricas de histórias, sabedoria, vivências. Logo, valorizar o que ainda é possível realizar, promover momentos de convivência significativa, construindo novas memórias, contribui para uma visão mais positiva sobre o envelhecimento, mesmo com limitações que algumas doenças impõem”, diz a psicóloga Simone. E uma outra camada também é o adulto, que transmite como pode se estabelecer essa relação com o outro, nesta fase da vida. “Quando presenciam e vivenciam um cuidado afetuoso, respeitoso e paciente, as crianças percebem que o cuidar é um ato de respeito e amor. Incluir a criança em gestos de cuidado como levar um copo de água, sentar ao ladinho para ver televisão, segurar as mãos, pentear um cabelo, despertam sentimentos de cuidado. Por outro lado, quando o cuidado é impaciente ou grosseiro, isso também é absorvido e pode ser reproduzido futuramente. Cuidar bem de alguém na velhice é cuidar com respeito, dignidade, ser presente, preservar a autonomia e independência enquanto possível, reconhecer seu valor, à medida que envelhecem.”

(texto de Cristiane Rogerio e Naíma Saleh) 

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