
Criança egocêntrica: como passar por essa fase da melhor forma
Ser egoísta faz parte do desenvolvimento infantil - e ensina a estabelecer limites. O comportamento egocêntrico é uma fase e a literatura pode ajudar a passar por ela.
Experimentar é um verbo que a autora e ilustradora Bruna Lubambo conjuga com desenvoltura.
Com mais de 30 obras ilustradas, entre elas As aventuras de Dorinha (Companhia das Letrinhas, 2023), que assina com Claudio Thebas, e De passinho em passinho - um livro para dançar e sonhar (Companhia das Letrinhas, 2021), em que criou com texto de Otávio Júnior, Bruna não se intimida diante de novas possibilidades de fazer arte. Transita entre a serigrafia, a gravura, a colagem e a pintura. Se arrisca, tenta, faz, refaz e vai aprendendo no próprio fazer - ou um “experimentar fazendo”, como define a própria autora. Foi assim com o mais recente lançamento dela, A pequena rainha (Companhia das Letrinhas, 2025), que é também a primeira vez que Bruna se aventura a criar ilustrações a partir de um processo tridimensional com papel, brincando com desenhos, recortes e sombras.
A pequena rainha constrói um castelo de papel to-di-nho seu...
Na história, a rainha constroi seu próprio castelo de papel e ainda organiza a própria festa de recepção, convidando 10 crianças para brincar. Vemos tudo sendo feito até que, em determinada parte do livro, começa um tangolomango [brincadeira folclórica com versos rimados que começa com um número inicial de elementos - e a cada rodada um deles sai até não sobrar ninguém]. A cada página, a rainha comanda uma nova brincadeira - e um convidado é mandado embora. O problema é que a rainha quer tanto, mas tanto, ser a dona da festa que ela acaba sem ninguém para brincar. E aí... de que adianta ter o próprio castelo e acabar ficando sozinha nele?
A inspiração para dar vida à pequena rainha ficou guardada durante muito anos em uma gaveta. O roteiro inicial da história surgiu a partir de uma oficina de teatro de bonecos, tradição histórica e cultural de Minas Gerais, onde a artista reside desde 2007. Em entrevista ao Blog Letrinhas, Bruna revela os bastidores d’A pequena rainha, conta da inspiração para criar a protagonista e divide as alegrias de experimentar novos processos a cada livro.
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Bruna Lubambo: Bem antes de eu me tornar ilustradora, por volta de 2014, passei um tempo estudando teatro de bonecos aqui em BH. Tinha a intenção de virar bonequeira, de trabalhar com cenografia e criação de bonecos. Em um dos cursos, que se chamava Luz e a sombra do boneco, com um bonequeiro chamado Tião, uma das propostas era criar bonecos com papel e fazer as apresentações criando luz e sombra. Lembro até que usávamos celofane para criar cor nas sombras e que nessa oficina em especial fazíamos os bonecos de papel amassado.
Imaginei a primeira versão de A pequena rainha como uma história no formato de teatro de bonecos - e no fim, o castelo pegava fogo! Anotei a ideia em formato de roteiro. Mas só mais de 10 anos depois reencontrei essas anotações e achei que poderia virar um livro ilustrado interessante. O texto tinha algo teatral, mais da oralidade, que é algo que me agrada muito como leitora. Comecei a trabalhar no texto, precisei reescrevê-lo algumas vezes e enviei para as editoras da Companhia das Letras.
Bruna Lubambo: Minha ideia era trazer o papel como protagonista nas ilustrações. Mas antes que eu sugerisse qualquer coisa, em uma das primeiras reuniões com a equipe da Companhia das Letras, a Ana [Tavares, editora da Companhia das Letras] me sugeriu fazer as ilustrações por esse caminho. Eu estava meio insegura de sugerir isso, de bancar essa ideia, porque não havia trabalho com papel antes dessa forma, mas ficou claro que a equipe estava muito sincronizada com a forma que eu estava pensando o livro.
Bruna Lubambo: Não teve rascunho! (risos) Eu contei com a ajuda de uma amiga fotógrafa, a Elisa Maria, e as ilustrações foram ficando prontas durante o próprio processo de fotografia. Primeiro, tentamos montar um estúdio caseiro, com a iluminação que eu mesma fui arrumando… Mas quando eu mandei as fotos para a Hellen Nakao [gerente de produção gráfica da Companhia das Letras], ela, com sabedoria, me disse que ainda podiam melhorar. Então, fomos atrás de um estúdio e refizemos tudo com uma iluminação mais profissional. Daí conseguimos deixar as sombras bem nítidas e ter mais controle para deixar as imagens como gostaríamos. Foi bem trabalhoso…Mas realmente estava faltando uma luz boa!
Sobre o projeto gráfico, não tínhamos um rascunho detalhado, só um esboço de composição bem inicial, como um storyboard pequeno, com cada página dupla, mas sem detalhes. Mas ao longo do processo meio que abandonamos isso e fomos improvisando na hora. Eu e a Elisa havíamos conversado sobre a necessidade de não fazer as fotos tão de perto das imagens para deixar espaço para o texto. E na hora de fotografar, consideramos as dobraduras, e a parte dos papéis onde não havia imagem como parte da ilustração. É claro que eu ter uma fotógrafa próxima fez toda a diferença. Muito da composição também tem o olhar dela.
Foi meu primeiro processo com a tridimensionalidade e isso, de certa forma, foi um gargalo, porque eu era completamente nova em trabalhar com o papel dessa forma. E acho que é meu único livro sem cores também. Quer dizer, a única cor que tem é o amarelo, que é a cor do verso, que aparece nos recortes do papel e também na capa. Foi uma sugestão da Helen pensar a capa amarela em contraste com a parte de dentro do livro, com o miolo que é todo branco. É como se tivesse uma cor de dentro e uma cor de fora do livro, como se fossem duas faces do mesmo papel. Com a capa amarela, parece que a rainha está entrando...
Bruna Lubambo: Sim, tenho notado que tem uma constância no meu trabalho com essa coisa de experimentar materiais diferentes. E de experimentar já fazendo. Meu processo de estudar já é meio que fazendo um livro. E por conta disso, eu preciso também estar aberta a refazer. Não tem muito planejar, sistematizar, para depois fazer. Pode soar mais desorganizado, mas eu vejo que acaba refletindo no jeito que eu gosto de trabalhar. Acho que o que eu quero dizer é que não consigo separar muito bem a parte da pesquisa e do próprio fazer. Ao usar alguma técnica ou material, eu já faço com uma ideia de livro na cabeça. Já tentei trabalhar de outras formas, mas não consegui.
Recortes, sombras e desenhos compõe juntos as ilustrações tridimensionais de A pequena rainha
Bruna Lubambo: Sim, depois das ilustrações, o texto foi refeito algumas vezes. Boa parte de A pequena rainha está escrita em métricas, e quando eu me proponho a fazer um texto seguindo esse formato, gosto de ser bem fiel. Então tive que reescrever muitas vezes até funcionar bem.
Na história, uma hora os personagens brincam de tangolomango. Então, a cada página dupla era necessário que um personagem saísse. Eu precisava explicar por que ele estava saindo, ao mesmo tempo em que precisava evidenciar o caráter da rainha como uma personagem mandona, mas não má - tudo isso seguindo a régua da quadrinha.
Durante a brincadeira, em uma das etapas, as crianças dançam em dupla com uma laranja na testa. Sendo assim, uma dupla teria que ser eliminada - e não um personagem só - e só nos demos conta disso quando o livro já estava quase pronto. No fim, tivemos que mudar o texto, que ficou: “Dançam todos contra todos, com uma laranja na testa. Mas um suava em bicas e foi embora da festa”. Dançando todos contra todos, não precisávamos eliminar dois de uma vez… Mas foi um ajuste no qual fiquei um mês pensando!
Bruna Lubambo: Não acho que a rainha era mimada… Acho que ela precisava aprender a ceder. Ela é muito inventiva, como toda criança. Ela inventa um castelo todo dela, e vai se perdendo naquela fantasia sem reparar tanto que estava deixando de brincar junto com as outras crianças.
Ela estava tão preocupada em mandar que faz besteira e acaba comprando a brincadeira da última criança, que quase faz um papel de malasarte, de bobo da corte. Essa última criança que sobra é quem consegue passar a perna na rainha e se torna a dona da brincadeira. A presença dela é importante para construir essa virada da protagonista.
Para mim era importante que a rainha fosse uma criança brincando com outras crianças. Porque no final é isso que a rainha quer: ela desiste do próprio castelo para ir à pracinha brincar entre seus pares. Acho que a oralidade, a brincadeira ajuda a trazer esse tipo de conversa sem ficar falando o que é certo e o que é errado.
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Bruna Lubambo: Sim, fui reparando que no enredo de várias histórias onde aparece um rei que é mandão, ele começa a fazer coisas que se voltam contra ele e ele passa por um processo de reparação. Me lembrei de O Reizinho Mandão (Editora Moderna) e também de Rumboldo (editora Moderna), de Eva Furnari. Tem algum momento da pequena rainha que eu faço menção a essas histórias:
“Como em outras aventuras de rei ou
rainha, a majestade ficou só, conversando com
seus botões, escutando o silêncio das grandes
paredes do castelo que construiu.”
E aí começa o processo mais reflexivo dela de dobrar e cortar papel e assim ela sai um pouco de um lugar de não saber como mudar de ideia…
Quando o tangolomango começa, a cada página tem um convidado que precisa ir embora do castelo...
Bruna Lubambo: A criança tem essa curiosidade, um olhar mais atencioso para as coisas. Quando vejo outros adultos lendo os livros que faço para as crianças, noto que elas sempre reparam em coisas que passam totalmente despercebidas, mesmo para mim que estou acostumada a olhar com atenção para as imagens. E a criança está mais aberta a aprender coisas novas, sem achar que tem que fazer de um jeito específico, sem se cobrar tanto, só por fazer. Eu vejo que às vezes o adulto quer tentar, quer fazer uma coisa nova, mas tem vergonha, não quer demonstrar que não sabe… Mas a criança não tem esse problema.
(Texto: Naíma Saleh)
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