O livro e o artista: territórios, sotaques e modos de ver e ser a partir das autorias negras

21/05/2025

Cosmopercepção, acalanto, experimentação, paixão, encontro, possibilidade. O tema era as imagens, mas a escolha das palavras neste seminário foi muito comovente! O bate-papo da noite de 20 de maio de 2025 promovido pela equipe da Companhia na Educação - Imagens e Narrativas na Literatura Negra para as Infâncias - foi com a autora Paty Wolff, os autores Josias Marinho e Marcelo D’Salete, e mediado pela pesquisadora de livros, infâncias e relações étnico-raciais Ananda Luz. Está no canal no Youtube para acessar, mas adiantamos aqui que a conversa trouxe estas questões a partir dos livros lançados este pelo selo Companhia das Letrinhas e Pequena Zahar. 

O encontro com os autores mexeu, de um lado e de outro, com as perguntas que muitas vezes surgem no chão da escola, principalmente com livros de narrativas visuais juntas ao texto, potencializadas por projetos gráficos ousados. Como eu vou atuar com esses livros nas rodas de leitura? Nos projetos pedagógicos? O que eu posso observar nos livros em seus detalhes? Como cada obra pode crescer ainda mais em sala de aula? Estávamos convidadas e convidados a pensar tudo isso principalmente a partir de três livros: Azul Haiti (Companhia das Letrinhas, 2025), de Paty Wolff, Bateção (Pequena Zahar, 2025), de Josias Marinho, e Luanda no Terreiro (Companhia das Letrinhas, 2025), de Marcelo D’Salete. Três livros extremamente brasileiros, no sentido de mostrar realidades, culturas, tradições e potência do nosso país, mas que também abordam as questões profundas sobre pertencimentos e territórios. Em Azul Haiti, Paty se inspirou no que observa na sua rotina da vivência e convivência dos imigrantes haitianos que moram em Cuiabá, onde ela, que é rondonense, mora hoje (clique na entrevista com ela aqui). Josias vai às suas raízes do Quilombo Príncipe da Beira, em Rondônia, para mostrar a luta pela sobrevivência entre peixes e os biguás, esses últimos que fazem suas revoadas em busca de comida, bem aos olhos dos pescadores da região (confira um papo com ele aqui). E Marcelo mergulha nas primeiras sensações de circular em terreiros, ver suas belezas, e provoca o leitor a aprender com a pequena Luanda a vencer preconceitos e estar mais perto dos profundos conhecimentos afro-brasileiros que, infelizmente, nem todo mundo acessa, ou não acessa com o devido respeito. (Mas, pelos menos na literatura infantil, isso está mudando e nunca é tarde para um bom letramento racial). 

“Cosmopercepção” foi um termo trazido na abertura da roda, por Ananda Luz. Ela que esteve em sala de aula da educação infantil por anos e hoje se volta para academia para estudar, mas continua na formação de educadores nos cursos de pós-graduação Educação e Relações Étnico-raciais e O Livro Para a Infância – n’A Casa Tombada – sentiu que os três livros e a conversa que se seguia poderia ser conectada ao conceito, como um lugar de desejo e movência na e para mediação de leitura. “Quem dá ele de presente para gente é Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, intelectual nigeriana, que fala da cosmopercepção como diferentes modos de perceber o mundo. Que não está tudo só na visão, o que seria a cosmovisão”, diz Ananda. “Ela convida a gente a valorizar os muitos sentidos e as experiências. Trazendo esta relação da pessoa com o mundo que passa pelo corpo, pelo que é percebido não só pelo que é visível, mas também no invisível. Nos sentidos e no que é sentido”, completa. 

Isso é pura incentivo à mediação de leitura! E quando falamos destas três obras, é muita potência junta. Os três livros são pensados por autores de textos e imagens, tanto mais para o campos do livro ilustrado, quanto das histórias em quadrinhos, que confluem linguagens artísticas, também pensando no livro como objeto. São materialidades diversas que podem ser levadas em consideração como importância narrativa. O adulto pode abrir possibilidades e a criança vai captar tudo que for possível. 

LEIA MAIS: Azul da cor do mar - do Haiti. Uma conversa com Paty Wolff

O lugar de cada um 

A beleza do encontro foi crescendo a partir dos depoimentos generosos dos autores, contando sobre infâncias e formações como artistas, e também dividindo detalhes do processo criativo de cada livro. Josias já começou de cara dizendo como ama fazer suas experimentações plásticas. Vai além da pintura, usa colagem, faz carimbos, brinca com as próprias criações. “Nessa hora de criar uma relação com o livro, se deixar contaminar pelo livro, mergulhar no livro, fruir naquilo que o livro oferece de cabo a rabo, de frente pra trás, de cabeça para baixo, é prestar atenção também nesse modo de fazer e observar isso também como modo de experimentação externa”, diz Josias que brinca com suas andanças pelo país, nascendo em Rondônia, tendo estudando artes em Minas e agora estar como professor na universidade federal de Roraima. 

Luanda no Terreiro, de Marcelo D'Salete

Luanda no terreiro (Companhia das Letrinhas, 2025)

Histórias em quadrinhos para jovens é o território de Marcelo D’Salete – autor, por exemplo, de Angola Janga (2017), Mukanda Tiodora (2022), ambos pela editora Veneta –  e agora ele “chega” à literatura infantil com esta mesma linguagem, mas com ponto de partidas diferente. “Sou um artista que fez um curso de artes visuais no ensino médio, depois artes plásticas na universidade, mestrado na história da arte e que cada vez mais fui me interessando pela área da história. E nas possibilidade de criar esses diálogos entre Arte e História. E também fazer novas perguntas utilizando as ferramentas da arte para questionar a história”, diz Marcelo. Em Luanda no Terreiro ele faz uma das grandes: porque o ódio às religiões de matriz africana antes mesmo de conhecê-las?  E então ele cria um encontro entre duas crianças e uma convida a outra a sair do preconceito enraizado para um passo importante em direção ao diálogo. “É minha primeira experiência ilustrando e pensando para um público infantil. A literatura infantil talvez seja uma das áreas mais ricas em termos de imagem, em termos de você pensar novas formas de utilizar uma imagem para contar uma história.” 

Paty Wolff também está apaixonada com por este território-livro. Começou a conversa falando que a maior parte de sua vida é em Cuiabá, mas também Paraná, Espírito Santo, que viveu em escolas públicas, periferias e nunca pensou em ser artista. Criança, nunca conheceu nada de perto da mesma forma que a encanta hoje. Paty está indicada ao Prêmio Pipa, dedicado a difundir a arte contemporânea brasileira, cujo os mais votados saberemos em agosto. O caminho dela não foi como de outros artistas. Só depois de fazer Geografia na graduação, mais precisamente no mestrado, é que encontrou a “sua” arte. “A arte me revelou muita coisa e possibilidade até de emancipação econômica. É enquanto adulta que eu percebo que posso, sim, ser o que eu quiser, ser artista, e que a arte é um ofício também”, diz Paty. E foi nesse momento que ela trouxe para roda a palavra “encontros”. “Eu acredito muito em encontros, atravessamentos. Eu escrevo diários desde adolescente, aquela coisa mesmo de gostar muito de escrever. Só que a escrita da literatura chega como um acalanto de trazer as histórias, e meu primeiro livro nasceu no puerpério”, referindo-se ao seu filho Leo. “Depois eu entendo esse caminho de me expressar pelas palavras – já me expressava pelas artes visuais, a pintura, o desenho, a escultura, a cerâmica – e a palavra chega com força”. E como trazer o universo das artes visuais para conversar com as crianças? “Azul Haiti acontece, selecionado pela Lei Paulo Gustavo, fomentado, chega às mãos da Companhia das Letrinhas, e começo a pensar como eu, artista visual… e agora?”. E aí pensar a relação das linguagens no livro ilustrado, inclusive começando uma pós-graduação n’A Casa Tombada de criação de livro ilustrado. “Para pensar como pesquisa, mas também neste ofício eu vou encontrando uma maneira de pensar essas narrativas e trazer assuntos. Não só para as infâncias, para todas as idades. Como esse adulto vai sentir? Eu na minha infância não tinha esses livros.  Estou também fazendo um acalanto nessas infâncias que a gente não teve isso, ainda mais narrativas negras. Que infâncias nos atravessam, que outros modos de vida, outras possibilidades de ser e estar no mundo”, completa Paty, há 10 anos nas artes visuais.        

Azul Haiti, de Paty Wolff

A imigração é o centro de Azul Haiti (Companhia das Letrinhas, 2025)

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O objeto livro: um suporte de mais de uma linguagem

Livro tem sotaque? Ananda brincou com isso por serem na roda pessoas de várias cidades brasileiras (ela está em Santo Antonio de Jesus, Bahia; Josias em Boa Vista, Roraima; Paty em Cuiabá, Mato Grosso; e Marcelo em São Paulo, capital). Disse que, na música, diz-se muito do “sotaque” do artista: a arte em relação direta com o território. “Como vocês pensam o livro isso está presente o sotaque e no modo como vocês narram”, diz. Marcelo achou a questão complexa e interessante. E contou que a criação de Luanda veio com uma vontade de dialogar com o público infantil, e também de experimentar outro formato de livro. “Eu já estava acostumado a trabalhar com leitores acima de 12 anos, com imagens em preto e branco. A gente sabe as possibilidades que a imagem traz ao leitor, em relação ao que está sendo tratado, ao próprio texto”, contou. Aí vieram o desafio de ter menos páginas e de usar cor. “Como trabalhar com cor depois de tanto tempo? Fui percebendo a história, que fala sobre uma garota e experiência dela num terreiro, que tem muito a ver como uma experiência pessoal indo em terreiros aqui em São Paulo e fora.

Conhecendo esse universo, me deparando com as cores, com toda a arquitetura dos espaços. Com a importância de ver a mata, as folhas ao redor, com a importância da música, da dança, das cores, entidades, os orixás: tudo isso para mim foi um grande convite a pensar isso, todo esse ensinamento e espaço extremamente rico, delimitado em quarenta e poucas páginas.” Algumas cores ele viu logo de cara que pertenciam ao livro. “O verde é algo marcante porque é marcante, porque é marcante na experiência religiosa de muitas religiões de matriz africana, a questão das ervas, da cura”. 

LEIA MAIS: É 'Bateção': canoa, memóriae rio na obra de Josias Marinho

Para Josias, estamos mais do que nunca em um momento de pensar “o livro como um todo” e a criação de Bateção tem a ver com isso. É livro-imagem, se tem texto no começo e no final? Convidando a um passeio no rio, provoca uma aproximação e distanciamento. Mas como isso é possível? A partir da sequência das imagens, do virar de páginas, do silêncio da ausência do texto. “A partir do momento em que a gente pensa o livro como um todo, pode pensar por várias nuances. No livro ilustrado, se você só lê o texto, é uma experiência x. Se você mostra o livro todo, é uma experiência y. Então como a gente dá conta disso? Eu não posso pegar o livro que foi pensado todo, capa, miolo, ler o texto e ignorar o resto”. O Bateção foi um processo editorial muito cuidadoso. “O próprio nome dele já é um marcador territorial. O que é Bateção se na capa eu não vejo um martelo, uma marreta?”. Que bateção é essa com pássaros e peixes? A capa tem/é uma aba, com os biguás para dentro do livro. “Foi ideia da Helen Nakao”, referindo-se à uma das editoras da equipe. 

Ilustração de Bateção, de Josias Marinho

Bateção (Pequena Zahar, 2025) traz com poética um fenômeno dos rios, contado pro Josiasi Marinho

Tudo é pensado por eles, pela editora, por toda a produção. Isso encantou quem estava assistindo à conversa ao vivo. Muitas vezes os comentários nem vinham em perguntas, mas em reflexões profundas. João Bones, por exemplo, disse:​​ “Como tratar o respeito e a empatia por pessoas de outras crenças e culturas com alunos que vem de lares conservadores que só aceitam a visão cristã de percepção de mundo?”. Miriana Miranda, se envolveu com “o outro lado”, do criador. “Que legal ouvir a explicação das ilustrações pelos ilustradores. Estou encantada!”. E Livia Luizi Kfoure elaborou que​​ Bateção é tocar o intangível e alcançar a terceira margem: a poesia.

Que sigamos todos, criadores, editores, leitores, educadores, crianças se aproximando cada vez mais destes limites e não-limites da arte e da poesia.

(Texto: Cristiane Rogerio)

 

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